Da prática das artes ao exercício da compreensão
Nasceu da vontade de fazer a diferença numa altura em que Macau vivia presa no impressionismo e naturalismo das telas. Chocou alguns, agradou a muitos outros, abriu portas e mostrou ao mundo que a cidade asiática dos anos 80 também sabia ser experimentalista. Projectou artistas e lançou a interculturalidade como conceito plástico e de vida. O PONTO FINAL foi à procura do passado do Círculo dos Amigos da Cultura, para perspectivar o futuro.
Isabel Castro
São pequenos e grandes objectos de um passado que parece muito distante, pelas voltas que a vida deu. Carlos Marreiros percorre carinhosamente com as mãos catálogos de cores que o tempo não alterou, guardados entre revistas antigas, recortes e fotografias. Um deles – o da primeira exposição – tens alguns metros quando desdobrado. Uma proeza gráfica, na altura em que não havia computadores. Estamos no princípio dos anos 80 e faziam-se milagres com a fotocomposição.
O arquitecto – que, para efeitos do texto presente, é sobretudo pintor – está sentado numa tarde de sol no Albergue de São Lázaro, um dos vários espaços culturais da cidade, realidade difícil de imaginar na altura em que toda esta história aconteceu. Folheia uma revista e ali está ela, a fotografia que se associa sempre ao Círculo dos Amigos da Cultura (CAC).
Da esquerda para a direita, Victor Hugo Marreiros vestido de preto, o próprio Marreiros de lenço vermelho e gabardina beije, com um braço no ombro do irmão e outro no de Un Chi Iam, que “renovou a pintura chinesa no feminino”. Segue-se Mio Pang Fei, o mais velho grupo, de Nikon na mão e olhar talvez distante escondido por uns óculos escuros. E estão lá ainda o sorriso de Kwok Woon e o ar algo envergonhado de um muito jovem Guilherme Ung Vai Meng.
Um grupo de amigos? Sim. Mas também um conjunto de artistas plásticos que viviam anos inesquecíveis: aqueles em que o mundo das artes os descobriu, enquanto eles iam à procura do mundo. São também os fundadores do núcleo de pintura contemporânea do Círculo dos Amigos da Cultura de Macau, movimento criado em 1984 que, quase um quarto século depois, continua vivo, de saúde e com gente nova a entrar em casa.
Romper com o estatuído
Carlos Marreiros refuta que Macau fosse, no início dos anos 80, um “deserto cultural” e recorda que, no pós-guerra, havia gente a dinamizar a cidade, no que à arte diz respeito. Luís Gonzaga Gomes organizava ciclos musicais e passaram por cá intérpretes em início de carreira que, anos mais tarde, regressaram com o estatuto de celebridades para o Festival Internacional de Música do território. “Existiam outras organizações que promoviam tertúlias literárias e conferências”, conta.
Nas artes plásticas, aconteciam também algumas tentativas, sempre a partir de estruturas associativas. Até ao início dos anos 80, havia “três associações dinâmicas”, explica Marreiros. A Associação de Belas-Artes de Macau explorava a pintura ocidental, sendo a maioria dos seus membros de etnia chinesa. A Associação dos Pintores e Calígrafos de Macau era uma estrutura estritamente oriental. “Nesta altura, já estava bastante desmobilizada a Associação Arco-Íris que, nos anos sessenta, foi o movimento mais vanguardista.” Os seus membros “não tinham espaço” em Macau e apostaram noutros contextos.
Com os anos 80 quase a bater à porta, tinha “chegado a Macau António Conceição Júnior que, à data, era curador do Museu Luís de Camões”. Foi, salienta Carlos Marreiros, um dos responsáveis por uma “frescura” no panorama artístico da cidade. Porém, a sociedade civil continuava sem organizações de artistas plásticos que explorassem novas vias. É neste contexto que aparece o CAC, numa cidade que não era um “deserto cultural”, garante o pintor – no entanto, “havia gente que esperava mais, principalmente ao nível oficial, por haver meios” para que assim fosse.
Da bolinha à pintura
Carlos Marreiros regressou a Macau em 1983. “Trabalhava na Comissão de Defesa do Património que tinha apoio administrativo e técnico do Departamento do Património Cultural do recém-criado Instituto Cultural de Macau (ICM)”, contextualiza. “Julguei que era importante criar uma estrutura associativa para as pessoas conviverem, trocarem ideias, organizar tertúlias, mas também participando em actividades lúdicas e desportivas.”
Apareceu assim o primeiro movimento associativo - o Grupo Desportivo e Recreativo do ICM. “Era um grupo de amigos, alguns funcionários do Instituto, do arquitecto ao licenciado em Literatura, passando pelo motorista.” Mas outras “pessoas interessantes” foram aparecendo, algumas delas fora da esfera do ICM, como Mio Pang Fei e Kwok Woon, pelo que surgiu a necessidade de haver uma associação “mais virada para as coisas culturais, plásticas, e do património”. E assim se criou o Círculo dos Amigos da Cultura.
Numa idade que convida ao dinamismo, os membros do CAC não se lançaram apenas em tarefas de elevado grau de intelectualidade. Juntamente com o Grupo Desportivo do ICM que, “curiosamente, ainda existe em termos formais”, o Círculo dos Amigos da Cultura participou no campeonato da bolinha. “Até fomos promovidos à primeira divisão. Jogámos também hóquei em campo e futebol de 11, o chamado ‘bolão’”.
Organizaram-se torneios de mahjong, fizeram-se pesquisas sobre o património, “lutámos para que o Bairro Albano de Oliveira não fosse destruído”, enumera Carlos Marreiros. O CAC tinha - e tem - vários núcleos. Na altura, dividia-se em grupos ligados à pintura, ao património e à fotografia, além do núcleo desportivo. O pintor conta que faziam parte da associação pessoas de diferentes áreas.
“Alguns de nós tocavam muitas teclas. Tínhamos produtores de televisão, arquitectos, juristas, era um grupo muito vasto e variado e fazíamos muitas coisas para nos entretermos.” Era também uma questão de exercício de cidadania, vinca.
O núcleo de pintura contemporânea acabou por ser o “mais dinâmico” e que, passados agora tantos anos, é aquele que permite identificar, de imediato, o Círculo dos Amigos da Cultura. O objectivo do grupo inicial de seis pintores era “contribuir para que Macau saísse do marasmo plástico”. Era uma cidade impressionista, naturalista e representativa. “Não se saía disto”, explica.
O grupo dos seis
“Éramos todos muito ‘avant-guard’, muito experimentalistas.” Aos seis fundadores rapidamente se juntaram outros jovens artistas. “A nossa preocupação foi abrir aos artistas de Macau. Uns estavam cá e não sabíamos, fomos descobrindo, outros iam chegando de Portugal.” Mais tarde, o CAC integrou pessoas de outras proveniências, sem qualquer ligação quer a Macau, quer a Portugal. Konstanstin Bessmertny é um deles.
Para se fazer parte do CAC havia uma exigência: a qualidade. “Não determinávamos escola. Pedíamos qualidade e, se possível, experimentação.” O pintor destaca o pioneirismo na interculturalidade passada à tela. Era um conceito de que, então, não se falava. Mio Pang Fei e Carlos Marreiros eram os dois artistas plásticos que, com abordagens distintas, cruzavam o Oriente e o Ocidente nas pinturas e instalações arrojadas que assinavam.
O trabalho era feito em grandes telas, estruturas de portas. Uma dimensão ao qual o público de Macau não estava habituado. Mas que não rejeitou. Embora os primeiros tempos não tenham sido fáceis, a colectiva de estreia “foi muito bem aceite, na pluralidade das propostas e na grande contemporaneidade das mesmas”. Com a cidade conquistada, impunham-se outros voos.
“Lembro-me que Kwok Woon queria ir a Hong Kong mas não nos convidavam. Hong Kong era uma barreira para Macau e ainda é, em certas coisas”, nota. O obstáculo só foi ultrapassado depois de terem feito sucesso fora de Macau. A chave foi Singapura.
“Em 1989, fizemos uma exposição no Museu Nacional de Singapura e as pessoas ficaram impressionadas com a qualidade e a novidade das obras, porque estavam à espera dos eternos pôr-do-sol, os juncos e as Ruínas de São Paulo, que era o que se praticava.” Liu Kang, o decano dos artistas da cidade-Estado, teceu os mais rasgados elogios ao grupo. “Foi a melhor mostra estrangeira de pintura nos últimos anos em Singapura”, escreveu a Revista Macau nesse ano, citando Liu.
Abriram-se as portas de Hong Kong, mas também de outras partes da Ásia, de Portugal, dos Estados Unidos e da Austrália. “Fizemos muitas colectivas. Trabalhámos sempre em grupo, o que é fantástico, embora todos nós tenhamos feito carreiras individuais.”
Marreiros volta ao futebol para falar do sentido de “camisola vestida”. E também de “treinadores com o braço no ombro”. Na altura, tinha apenas 28 anos, mas fazia já parte do grupo de experientes. “Agenciámos pessoas mais novas e de outras tendências”, diz. “Fomos muito dinâmicos nos anos 80 e até metade dos anos 90. Fazíamos tudo, dos catálogos a colar cartazes, preparávamos textos, púnhamos parafusos na parede e pendurávamos quadros.”
Uma nova fase
Embora o CAC nunca tenha parado a sua actividade, passou a estar mais escondido. Por um lado, porque “não publicitámos o que íamos fazendo”; por outro, “fomos menos dinâmicos a organizar conferências e seminários”. E assim se passou um período em que “deixamos de ser, um pouco por culpa nossa, aquele movimento aglutinador”. E também, acrescenta, “porque os mentores engordaram, aburguesaram-se”.
Nos últimos tempos, assistiu-se a uma espécie de ressurreição do Círculo dos Amigos da Cultura. Há gente nova a trabalhar com o grupo. “Uns artistas por sua iniciativa, outros por propostas de membros, e ainda outros que achámos que devíamos chamar.” Marreiros defende que “é preciso sempre gente jovem a trazer as artes plásticas ao debate público” e congratula-se com a existência de vários movimentos na cidade que lutam nesse sentido, como “a Comuna de Pedra e, mais recentemente, a Art for All”. Alguns dos artistas pairam nas diferentes organizações. “O CAC foi a escola de todos”, sorri Marreiros, enquanto mostra livros com telas de muitos artistas. Alguns já cá não vivem, outros por aqui continuam, como James Chu. “É nosso membro desde muito miúdo”, diz.
O núcleo de pintura está de malas feitas para participar, nos próximos dias, na 23ª Exposição de Arte Internacional da Ásia, que se realiza este ano em Cantão. “Somos membros da Federação dos Artistas da Ásia, que anualmente organiza esta exposição. Somos cerca de 16 países e regiões. Macau e Hong Kong participaram antes da transferência de administração e, por isso, ainda têm quota.” Embora Macau seja “o membro mais pequeno”, pode levar tantos trabalhos e artistas como países de grandes dimensões. “E isto deu possibilidade a muitas pessoas, membros e outros artistas, de conhecerem novas pessoas e alargarem horizontes.” E continua a dar.