As fragilidades da lei e do sistema
Os tribunais do território não estão ainda suficientemente amadurecidos para aplicar uma lei com um conteúdo tão sensível como aquele que prevê o Artigo 23º da Lei Básica, consideram advogados e juristas de Macau. Esta é uma das conclusões de um inquérito lançado pelo Ponto Final aos que têm o Direito como profissão.
Isabel Castro
Os órgãos de investigação criminal da RAEM não reúnem as condições suficientes para a correcta aplicação da legislação contemplada pelo Artigo 23º da Lei Básica de Macau. O mesmo se passa com os tribunais do território, que não estão suficientemente amadurecidos. Assim pensam todos os licenciados em Direito que responderam ao inquérito do PONTO FINAL sobre a lei de defesa da segurança do Estado.
Não houve um único jurista que tivesse demonstrado confiança na aplicação da legislação pelo sistema judiciário local e muitas reticências foram deixadas acerca da forma como está feito o projecto colocado a consulta pública pelo Governo. Enviado a mais de cinquenta licenciados em Direito através de e-mail, ao inquérito deste jornal responderam 12 juristas, entre terça-feira passada e ontem. A grande maioria daqueles que aceitaram o repto fez questão de deixar ainda algumas sugestões com vista a melhorar a forma como o diploma está concebido.
O PONTO FINAL quis saber, antes de mais, qual a atenção dedicada pelos especialistas em Direito ao processo legislativo do Artigo 23º. Mais de 66 por cento disse ter lido, com atenção, o documento proposto a consulta pelo Governo. Os restantes dividem-se em dois grupos: metade leu “por alto” e a outra não tinha ainda olhado, à data de resposta do inquérito, para o “livrinho” verde distribuído pelas autoridades governamentais.
Quisemos ainda saber qual o grau de participação dos nossos inquiridos em relação à manifestação de opiniões junto do Executivo, quer em sessões públicas, quer através de outros meios disponibilizados pela Administração. Mais de 16 por cento dos advogados e juristas já tinha manifestado a sua opinião, sendo que, na altura em que responderam, 33,3 por cento tinham intenção de ainda expressar os seus pontos de vista no âmbito da consulta pública. Exactamente metade não deu a sua opinião nem tinha planos nesse sentido.
Todos os inquiridos concordam com as críticas que foram feitas acerca do prazo definido para a consulta pública: entendem que, dada a complexidade da matéria contemplada, o período para a auscultação deveria ter sido alargado.
Quanto ao momento político da apresentação da lei de defesa da segurança do Estado, 75 por cento dos respondentes não concorda com a altura escolhida pelo Executivo, atendendo ao actual enquadramento político e judiciário da RAEM. “Não tem sentido para Macau e há outras prioridades”, aponta um dos inquiridos. Mais de 16 por não vê qualquer problema neste domínio, sendo que os restantes optaram por não responder.
Sedição mal redigida
Desde que a legislação prevista pelo Artigo 23º foi apresentada ao público, foram várias as sugestões de ordem técnica deixadas ao proponente. O PONTO FINAL optou por fazer perguntas apenas sobre três artigos do projecto governamental, deixando o convite aos juristas para se pronunciarem sobre outras questões que considerem ser relevantes.
Uma das normas do diploma que tem suscitado debate diz respeito à proibição dos actos de sedição (artigo 5º). Cinquenta por cento entende que a norma carece de melhor redacção, sendo que 33,3 por cento considera que o diploma não deve sequer incluir um artigo sobre este crime. No projecto em análise, a sedição aplica-se à incitação da prática dos actos descritos nos artigos 2º, 3º e 4º, que dizem respeito à traição à pátria, à secessão do Estado e à subversão contra o Governo Popular Central.
Estas três normas prevêem penas que vão dos 15 aos 25 anos – um dos aspectos mais contestados da proposta de lei. Para um dos juristas, “as molduras penais, em especial dos artigos 2º,3º e 4º, têm um limite mínimo demasiado alto”.
Opinião semelhante foi expressa por outro respondente que sugere “a revisão, para menos, das molduras penais, quer no limite máximo, quer no limite mínimo”. Este especialista destaca “a necessidade da diminuição substancial da moldura penal quanto à subversão, por ser manifestamente inadequada face aos crimes dos artigos precedentes [traição à pátria e secessão do Estado]”. “O bem jurídico em causa não é, inquestionavelmente, da mesma dimensão”, argumenta.
O mesmo especialista sugere a divisão em dois do artigo relativo aos actos de subversão, “separando a violência para derrubar o Governo da coacção para praticar determinado acto ou abster-se de o praticar”.
Perigoso segredo
Bastante polémica tem gerado também o artigo 6º do diploma, que versa sobre a subtracção de segredo de Estado. Todos os inquiridos são do entendimento que é necessária a revisão da norma em questão, de modo a que seja feita uma clarificação.
“O artigo 6º deveria ser profundamente remodelado e deveria inscrever-se uma salvaguarda de violação de segredo por motivos de interesse público, como razões de alerta em saúde pública, por exemplo, entre tantos mais”, defende um jurista. A opinião é partilhada por outros especialistas em Direito, que defendem também a introdução da noção de interesse público no diploma.
Ainda neste artigo, prevê-se que os órgãos judiciais devem obter do Chefe do Executivo uma certidão sobre os documentos, informações ou objectos específicos respeitantes a segredo de Estado, sempre que se levantem questões em processo penal. A mesma norma estatui que “antes de emitir tal certidão, o Chefe do Executivo deve obter documento certificativo do Governo Popular Central”. Este ponto preocupa e leva um dos respondentes a sugerir a reformulação da norma, inscrevendo “expressamente na lei que não pode haver lugar a determinação de segredo com efeitos retroactivos”. É que, do outro lado da fronteira, pode-se considerar segredo de Estado matéria que, à data da sua utilização, não estava classificada como tal.
Na lista de artigos sobre os quais existem muitas dúvidas inclui-se também a norma que diz respeito aos actos preparatórios, por se temer uma interpretação abusiva. Quisemos saber se os advogados são favoráveis à eliminação do artigo. Mais de 83 por cento disseram que sim, sendo que os restantes entendem que carece apenas de melhor redacção. Um dos juristas sugere a circunscrição dessa punição apenas face a alguns dos crimes previstos na lei.
Garantias e amor
Foi uma ideia sublinhada pelo Chefe do Executivo no dia da apresentação do projecto e reafirmada ao longo da consulta pública: o Governo assegura que teve em conta os direitos fundamentais da população da RAEM, dando especial destaque à liberdade de expressão. Ora, para 91,6 por cento dos advogados que responderam ao inquérito do PONTO FINAL, se não houver quaisquer alterações ao articulado disponibilizado para consulta, a lei não é garantia suficiente de que não haja uma colisão com direitos constitucionalmente protegidos.
“É necessário que a subsidiariedade da lei penal e processual penal não seja meramente remissiva no diploma, e sejam sim mais claramente consagrados os princípios estruturantes de Direito de Necessidade, a não retroactividade penal e demais princípios da lei penal, bem como a sua ligação à Lei Básica”, aponta um dos respondentes.
Pretendeu-se ainda saber qual o grau de confiança dos inquiridos em relação aos órgãos de investigação criminal e aos tribunais da RAEM. O facto de ninguém acreditar que estão reunidas as condições necessárias para assegurar que uma legislação deste género será aplicada sem problemas é reveladora de que algo vai mal. “O problema não estará tanto na lei em si – boa ou má - e nas regulamentações posteriores, mas na aplicação do Direito que aqui se faz”, considerou um dos advogados, muito crítico em relação às práticas do sistema judiciário penal em matéria criminal.
“Os tribunais penais em Macau têm uma visão punitiva, sancionadora, retributiva e não procuram a ressocialização do agente [...], preferem, sim, punir para dar o exemplo”, continuou o mesmo jurista. “Há uma enorme falta de fundamentação das decisões que são tomadas nas instâncias judiciais da RAEM”, prosseguiu.
Um outro advogado fez ainda referência à forma como está elaborada a introdução do documento disponibilizado pelo Governo para a consulta pública. Nesse texto lê-se que “amor à pátria e a amor a Macau, de corpo e alma, têm sido uma tradição por excelência dos residentes da Região”. O mesmo escrito acrescenta que “após o retorno à pátria, o espírito deste amor transformou-se numa força motriz para a construção e o desenvolvimento da Região, configurando-se uma noção comum em que compete à RAEM o cumprimento da missão de defesa da segurança nacional”.
Para este jurista, “mostra-se necessária uma redacção menos emocional aos sentimentos patrióticos, pois o preâmbulo introdutório do diploma deve justificar a necessidade de legislar de forma mais concreta e menos sentimental”. Alerta o advogado que “um texto jurídico de introdução de um diploma legal não deverá ser um manifesto poético, deve ser propositado mas não emocionado”. E conclui perguntando “se já é assim na introdução, o que será na aplicação em julgamento”.
O PONTO FINAL garantiu o anonimato do tratamento das respostas de todos os inquiridos, deixando, porém, a possibilidade de identificação das opiniões. Todos os respondentes preferiram que as suas sugestões não fossem identificadas no tratamento jornalístico do inquérito.
Os tribunais do território não estão ainda suficientemente amadurecidos para aplicar uma lei com um conteúdo tão sensível como aquele que prevê o Artigo 23º da Lei Básica, consideram advogados e juristas de Macau. Esta é uma das conclusões de um inquérito lançado pelo Ponto Final aos que têm o Direito como profissão.
Isabel Castro
Os órgãos de investigação criminal da RAEM não reúnem as condições suficientes para a correcta aplicação da legislação contemplada pelo Artigo 23º da Lei Básica de Macau. O mesmo se passa com os tribunais do território, que não estão suficientemente amadurecidos. Assim pensam todos os licenciados em Direito que responderam ao inquérito do PONTO FINAL sobre a lei de defesa da segurança do Estado.
Não houve um único jurista que tivesse demonstrado confiança na aplicação da legislação pelo sistema judiciário local e muitas reticências foram deixadas acerca da forma como está feito o projecto colocado a consulta pública pelo Governo. Enviado a mais de cinquenta licenciados em Direito através de e-mail, ao inquérito deste jornal responderam 12 juristas, entre terça-feira passada e ontem. A grande maioria daqueles que aceitaram o repto fez questão de deixar ainda algumas sugestões com vista a melhorar a forma como o diploma está concebido.
O PONTO FINAL quis saber, antes de mais, qual a atenção dedicada pelos especialistas em Direito ao processo legislativo do Artigo 23º. Mais de 66 por cento disse ter lido, com atenção, o documento proposto a consulta pelo Governo. Os restantes dividem-se em dois grupos: metade leu “por alto” e a outra não tinha ainda olhado, à data de resposta do inquérito, para o “livrinho” verde distribuído pelas autoridades governamentais.
Quisemos ainda saber qual o grau de participação dos nossos inquiridos em relação à manifestação de opiniões junto do Executivo, quer em sessões públicas, quer através de outros meios disponibilizados pela Administração. Mais de 16 por cento dos advogados e juristas já tinha manifestado a sua opinião, sendo que, na altura em que responderam, 33,3 por cento tinham intenção de ainda expressar os seus pontos de vista no âmbito da consulta pública. Exactamente metade não deu a sua opinião nem tinha planos nesse sentido.
Todos os inquiridos concordam com as críticas que foram feitas acerca do prazo definido para a consulta pública: entendem que, dada a complexidade da matéria contemplada, o período para a auscultação deveria ter sido alargado.
Quanto ao momento político da apresentação da lei de defesa da segurança do Estado, 75 por cento dos respondentes não concorda com a altura escolhida pelo Executivo, atendendo ao actual enquadramento político e judiciário da RAEM. “Não tem sentido para Macau e há outras prioridades”, aponta um dos inquiridos. Mais de 16 por não vê qualquer problema neste domínio, sendo que os restantes optaram por não responder.
Sedição mal redigida
Desde que a legislação prevista pelo Artigo 23º foi apresentada ao público, foram várias as sugestões de ordem técnica deixadas ao proponente. O PONTO FINAL optou por fazer perguntas apenas sobre três artigos do projecto governamental, deixando o convite aos juristas para se pronunciarem sobre outras questões que considerem ser relevantes.
Uma das normas do diploma que tem suscitado debate diz respeito à proibição dos actos de sedição (artigo 5º). Cinquenta por cento entende que a norma carece de melhor redacção, sendo que 33,3 por cento considera que o diploma não deve sequer incluir um artigo sobre este crime. No projecto em análise, a sedição aplica-se à incitação da prática dos actos descritos nos artigos 2º, 3º e 4º, que dizem respeito à traição à pátria, à secessão do Estado e à subversão contra o Governo Popular Central.
Estas três normas prevêem penas que vão dos 15 aos 25 anos – um dos aspectos mais contestados da proposta de lei. Para um dos juristas, “as molduras penais, em especial dos artigos 2º,3º e 4º, têm um limite mínimo demasiado alto”.
Opinião semelhante foi expressa por outro respondente que sugere “a revisão, para menos, das molduras penais, quer no limite máximo, quer no limite mínimo”. Este especialista destaca “a necessidade da diminuição substancial da moldura penal quanto à subversão, por ser manifestamente inadequada face aos crimes dos artigos precedentes [traição à pátria e secessão do Estado]”. “O bem jurídico em causa não é, inquestionavelmente, da mesma dimensão”, argumenta.
O mesmo especialista sugere a divisão em dois do artigo relativo aos actos de subversão, “separando a violência para derrubar o Governo da coacção para praticar determinado acto ou abster-se de o praticar”.
Perigoso segredo
Bastante polémica tem gerado também o artigo 6º do diploma, que versa sobre a subtracção de segredo de Estado. Todos os inquiridos são do entendimento que é necessária a revisão da norma em questão, de modo a que seja feita uma clarificação.
“O artigo 6º deveria ser profundamente remodelado e deveria inscrever-se uma salvaguarda de violação de segredo por motivos de interesse público, como razões de alerta em saúde pública, por exemplo, entre tantos mais”, defende um jurista. A opinião é partilhada por outros especialistas em Direito, que defendem também a introdução da noção de interesse público no diploma.
Ainda neste artigo, prevê-se que os órgãos judiciais devem obter do Chefe do Executivo uma certidão sobre os documentos, informações ou objectos específicos respeitantes a segredo de Estado, sempre que se levantem questões em processo penal. A mesma norma estatui que “antes de emitir tal certidão, o Chefe do Executivo deve obter documento certificativo do Governo Popular Central”. Este ponto preocupa e leva um dos respondentes a sugerir a reformulação da norma, inscrevendo “expressamente na lei que não pode haver lugar a determinação de segredo com efeitos retroactivos”. É que, do outro lado da fronteira, pode-se considerar segredo de Estado matéria que, à data da sua utilização, não estava classificada como tal.
Na lista de artigos sobre os quais existem muitas dúvidas inclui-se também a norma que diz respeito aos actos preparatórios, por se temer uma interpretação abusiva. Quisemos saber se os advogados são favoráveis à eliminação do artigo. Mais de 83 por cento disseram que sim, sendo que os restantes entendem que carece apenas de melhor redacção. Um dos juristas sugere a circunscrição dessa punição apenas face a alguns dos crimes previstos na lei.
Garantias e amor
Foi uma ideia sublinhada pelo Chefe do Executivo no dia da apresentação do projecto e reafirmada ao longo da consulta pública: o Governo assegura que teve em conta os direitos fundamentais da população da RAEM, dando especial destaque à liberdade de expressão. Ora, para 91,6 por cento dos advogados que responderam ao inquérito do PONTO FINAL, se não houver quaisquer alterações ao articulado disponibilizado para consulta, a lei não é garantia suficiente de que não haja uma colisão com direitos constitucionalmente protegidos.
“É necessário que a subsidiariedade da lei penal e processual penal não seja meramente remissiva no diploma, e sejam sim mais claramente consagrados os princípios estruturantes de Direito de Necessidade, a não retroactividade penal e demais princípios da lei penal, bem como a sua ligação à Lei Básica”, aponta um dos respondentes.
Pretendeu-se ainda saber qual o grau de confiança dos inquiridos em relação aos órgãos de investigação criminal e aos tribunais da RAEM. O facto de ninguém acreditar que estão reunidas as condições necessárias para assegurar que uma legislação deste género será aplicada sem problemas é reveladora de que algo vai mal. “O problema não estará tanto na lei em si – boa ou má - e nas regulamentações posteriores, mas na aplicação do Direito que aqui se faz”, considerou um dos advogados, muito crítico em relação às práticas do sistema judiciário penal em matéria criminal.
“Os tribunais penais em Macau têm uma visão punitiva, sancionadora, retributiva e não procuram a ressocialização do agente [...], preferem, sim, punir para dar o exemplo”, continuou o mesmo jurista. “Há uma enorme falta de fundamentação das decisões que são tomadas nas instâncias judiciais da RAEM”, prosseguiu.
Um outro advogado fez ainda referência à forma como está elaborada a introdução do documento disponibilizado pelo Governo para a consulta pública. Nesse texto lê-se que “amor à pátria e a amor a Macau, de corpo e alma, têm sido uma tradição por excelência dos residentes da Região”. O mesmo escrito acrescenta que “após o retorno à pátria, o espírito deste amor transformou-se numa força motriz para a construção e o desenvolvimento da Região, configurando-se uma noção comum em que compete à RAEM o cumprimento da missão de defesa da segurança nacional”.
Para este jurista, “mostra-se necessária uma redacção menos emocional aos sentimentos patrióticos, pois o preâmbulo introdutório do diploma deve justificar a necessidade de legislar de forma mais concreta e menos sentimental”. Alerta o advogado que “um texto jurídico de introdução de um diploma legal não deverá ser um manifesto poético, deve ser propositado mas não emocionado”. E conclui perguntando “se já é assim na introdução, o que será na aplicação em julgamento”.
O PONTO FINAL garantiu o anonimato do tratamento das respostas de todos os inquiridos, deixando, porém, a possibilidade de identificação das opiniões. Todos os respondentes preferiram que as suas sugestões não fossem identificadas no tratamento jornalístico do inquérito.