12.02.2008

O terrível preço de um vício

“Só me interessava jogar”

Num território onde existe um casino por quilómetro quadrado, o vício do jogo é uma realidade desconcertante, destruindo lares e relações. O PONTO FINAL foi à procura desse mundo, contactando vítimas, profissionais da área e as autoridades.

Luciana Leitão

Um discurso hesitante. Um olhar fugidio. Gestos nervosos. Wong – nome fictício – não perdeu apenas dois milhões de dólares de Hong Kong nos casinos de Macau. Divorciado e com uma filha que mal o reconhece, foi perdendo, ao longo de mais de dez anos, a confiança dos amigos e de familiares. Em entrevista exclusiva, este funcionário de casinos conta como passava as noites – e, por vezes, também os dias –, depois do horário de trabalho, nas salas de jogo do território. E como isso o foi destruindo aos poucos.
Deu os primeiros passos no mundo do jogo em frente a uma mesa de mahjong, junto dos amigos e da família. Nessa altura, era pura diversão, apesar de já envolver dinheiro. Mas o vício, esse, adquiriu-o mais tarde nas salas dos casinos. “Comecei a perceber que tinha um problema quando vi que a minha vida estava um caos, tinha imensas dívidas, a minha mulher arranjou um amante e só me interessava por jogar”, conta.
Fez de tudo para arranjar dinheiro. Pedia emprestado ou “furtava objectos valiosos daqueles que lhe eram mais próximos” para vender. A família “começou a perceber” o que se passava. “A minha vida estava um caos”, desabafa, acrescentando que “sabia que estava a agir de forma errada, mas não conseguia controlar-se”.

O trabalho num casino

Aos 23 anos, Wong deixou o emprego estável no banco e resolveu tentar a sua sorte num dos casinos do território como “dealer”. “Não tinha muitas qualificações [para outros empregos] e é muito bem pago em Macau”, explica. Rapidamente, a tentação tornou-se insuportável e Wong passou a jogar, depois do horário de trabalho.
“O emprego era chato, sentia muita pressão e precisava de algum tipo de alívio”, diz, explicando que “acabou por encontrá-lo no jogo”. Aliás, não é o único, já que “a maioria dos colegas – e dos superiores hierárquicos – também sofre do mesmo problema”, admite.
Quando casou com a sua ex-mulher, aos 27 anos, já sofria deste vício, mas não tinha noção da sua dimensão. O casamento apenas durou um ano, já que Wong “não só não tinha tempo para estabelecer um bom relacionamento com a mulher”, como, por vezes, “pedia-lhe para pagar as suas dívidas de jogo”.
Apercebendo-se de que o casamento estava a atravessar sérios problemas, pensava sempre que tudo se resolveria “se ganhasse mais dinheiro”. Só assim teria possibilidades de “comprar presentes, anéis e jóias”, para compensar a sua ausência. Na realidade, tal como tudo o que se passava na sua cabeça na altura, nada mais era do que uma ilusão e o casamento teve um fim inevitável.

Fuga para a Irlanda

Encontrava-se num “círculo vicioso”. Pedia dinheiro emprestado, perdia-o e endividava-se para tentar “recuperar as perdas”. E, como todos os jogadores, tinha “uma memória selectiva” - nunca se lembrava daquilo que perdia, mas apenas daquilo que ganhava ou poderia ganhar.
Entretanto, as dívidas junto dos agiotas começaram a crescer. “Nunca me batiam, porque queriam sempre que regressasse ao casino para reaver o dinheiro que lhes devia”, diz. Contudo, as ameaças tornaram-se mais sérias e Wong começou a temer pela vida. Com medo, não teve outro remédio senão fugir para a Irlanda, onde permaneceu durante cinco anos. “Lá, continuei a jogar, mas de diferentes formas. Passava muito tempo a apostar”, recorda.
Acabou por regressar ao território, apenas por amor à filha. “Tive-a durante o meu primeiro – e único – casamento, mas ela mal me conhece”, admite, com alguma tristeza.
Quanto a relacionamentos amorosos, além da ex-mulher, aquando do seu regresso a Macau, envolveu-se novamente com outra pessoa. Mas também essa relação terminou rapidamente, porque “continuava viciado no jogo”.

SOS

Só depois de duas tentativas frustradas de suicídio é que Wong procurou ajuda junto de uma organização não governamental (ONG). “A terapia de grupo tem provado ser muito positiva, já que há mais de um ano que estou sem jogar”, conta. E foi nesse ano que “o relacionamento com os pais melhorou” e que “os amigos voltaram a procurá-lo”.
Hoje em dia, continua a trabalhar num casino do território, apesar de reconhecer que a tentação é quase insuportável, principalmente “quando vê pessoas a ganhar”. Aliás, um jogador tende a só se recordar das vitórias, mas, dadas as suas “poucas qualificações”, este é o “melhor salário” que consegue.
Tornou-se também um homem devoto, passando a frequentar todos os domingos a igreja. Mas, apesar de estar há um ano sem jogar, algumas coisas ficaram pelo caminho. “A minha filha não gosta muito de mim”, admite, conformado. Quanto às dívidas, ainda hoje existem. “A minha família pagou aos agiotas e agora estou a pagar-lhes o empréstimo”, declara.

Mais homens do que mulheres

Desde Novembro de 2005 até Outubro de 2008, a Casa de Vontade Firme, do Instituto de Acção Social (IAS), já lidou com um total de 2017 casos, sendo que 1716 corresponderam a chamadas telefónicas e 301 referem-se ao número de pessoas que tiveram reuniões individuais regulares com assistentes sociais. “A maioria dos indivíduos tem idades compreendidas entre os 31 e os 50 anos”, explica a coordenadora Bonnie Wu.
No que toca ao apoio via linha telefónica, há uma percentagem ligeiramente superior de mulheres, sendo que, ao invés, no caso das entrevistas, a percentagem de utentes do sexo masculino é superior. “No global, pode dizer-se que a percentagem maior de utentes são homens”, diz, explicando que “grande parte dos telefonemas têm por interlocutores os familiares dos indivíduos que sofrem desta problemática”. Aliás, “destes 1716 telefonemas recebidos, 27 por cento são feitos por familiares”, esclarece a responsável pelo organismo.
Dos casos que têm sido seguidos, “70 por cento apresentam melhorias”, o que significa que “têm reduzido os comportamentos de prática de jogo e a frequência em que pensam no vício”. De acordo com Bonnie Wu, “é difícil” identificar uma cura. “Pode melhorar gradualmente. Aliás, passado uma semana, já se faz um questionário e preenche-se um boletim de avaliação, onde alguns indicadores poderão mostrar se houve alguma melhoria”, explica. Mas, contrapõe, “mesmo que um indivíduo durante muitos anos não tenha jogado, pode sempre retomar o vício”.
Situando-se a maioria dos utentes na faixa etária dos 31 aos 50 anos, só se registam “menos de um por cento de pessoas com mais de 61 anos”, enquanto que o número de indivíduos com idades compreendidas entre os 21 e 30 já ascende aos 19 por cento.

Os indícios

Apesar de, durante algum tempo, a família e os amigos ignorarem que aquele indivíduo é viciado no jogo, há alguns indícios a que se pode estar atento. “Quando uma pessoa requer vários cartões de crédito, não paga as contas, pede dinheiro emprestado, tem uma atitude estranha quando se fala de dinheiro ou, por vezes, tem muitas patacas e, noutras ocasiões, não tem nenhumas” são apenas alguns exemplos dos chamados sinais de alarme. Indícios que depois podem resultar em “problemas emocionais e económicos, além da quebra da relação matrimonial e familiar”.
Quando se está a proceder à terapia no Centro de Vontade Firme, normalmente “tenta mudar-se o pensamento do jogador, avalia-se a relação com a família” e, finalmente, “procede-se à reorganização dos débitos dos jogadores”, sendo que os próprios familiares do utente podem participar nas reuniões.

Estudo IAS/UMAC

Quanto ao número de utentes da Casa de Vontade Firme que são funcionários de casinos, Bonnie Wu afirma que “há alguns casos, mas não há dados exactos”, alertando também para o facto de que “os números [da Casa de Vontade Firme] não reflectem a situação de Macau – só ajudamos os casos de pessoas que vêm cá voluntariamente”. Contudo, admite, “está a ser realizado um estudo, em colaboração com a Universidade de Macau, que tem por tema esta realidade”, preferindo, por isso, não se pronunciar até que se torne público.
Mais importante do que o tratamento é o trabalho de prevenção. De acordo com Bonnie Wu, desde o “boom” da indústria do jogo que se tornou necessário reforçar a informação “nos bairros comunitários”. Além disso, dado o aumento do rendimento médio, a Casa de Vontade Firme “tende a ajudar as pessoas na gestão do dinheiro”.

Followers

Blog Archive

About Me

DIRECTOR Paulo Reis REDACÇÃO Isabel Castro, Rui Cid, João Paulo Meneses (Portugal); COLABORADORES Cristina Lobo; Paulo A. Azevedo; Luciana Leitão; Vítor Rebelo DESIGN Inês de Campos Alves PAGINAÇÃO José Figueiredo; Maria Soares FOTOGRAFIA Carmo Correia; Frank Regourd AGÊNCIA Lusa PUBLICIDADE Karen Leong PROPRIEDADE, ADMINISTRAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Praia Grande Edições, Lda IMPRESSÃO Tipografia Welfare, Ltd MORADA Alameda Dr Carlos d'Assumpção 263, edf China Civil Plaza, 7º andar I, Macau TELEFONE 28339566/28338583 FAX 28339563 E-MAIL pontofinalmacau@gmail.com