A vida escondida do judeu salvo por nazis
Há histórias tão incríveis que, contadas, ninguém acredita. Foi o que aconteceu a Alex Kurzem, bielorrusso de origem, filho de judeus. Sobreviveu a um massacre, fugiu com apenas cinco anos, foi salvo pelos nazis que lhe mataram a família. Ao longo de sessenta anos, escondeu a verdadeira identidade. Ao PONTO FINAL, explicou quais as razões que o fizeram tirar a máscara.
Isabel Castro
É um homem de palavras directas, sem rodeios ou metáforas, nem tão pouco lições de moral. Como se a história de vida que é a sua contivesse toda a verdade do mundo, simplesmente por ter acontecido. Fala com uma voz suave mas, não obstante os sessenta anos de inglês da Austrália, ainda se nota a influência da infância na Europa Oriental. Confessa que às vezes lhe faltam as palavras. Foram muitas línguas para alguém que diz ter “três pessoas” dentro de si.
Não há ninguém com uma história como a de Alex Kurzem. O próprio admite o carácter “invulgar” do seu relato. Conhecem-se descrições de crianças judias que sobreviveram ao Holocausto “mas que foram salvas por outros judeus”. Acontece que Kurzem escapou à morte porque um soldado nazi o escolheu para seu protegido.
“É uma pergunta que continuo a fazer a mim mesmo. Não sei porquê. Mataram todos os miúdos mas deixaram-me viver”, disse ontem na Universidade de Macau, onde esteve para falar da sua vida. O Departamento de Inglês da instituição de ensino superior aproveitou a estadia de Alex Kurzem em Hong Kong e trouxe-o até ao território. Antes de responder a uma casa cheia de estudantes e professores universitários, mas também de alunos mais pequenos, foi projectado um documentário sobre o seu peculiar percurso.
Alex Karzem não sabe a idade nem o local exacto do seu nascimento, mas deve andar agora à volta dos 74 anos. Em 1941, quando tinha apenas cinco anos de idade, a aldeia onde vivia foi invadida pelas tropas alemãs. Em plena Segunda Guerra Mundial, o que aconteceu na localidade bielorrussa foi uma repetição do que se viu em diferentes países europeus. E o que aconteceu é, na realidade, a primeira memória de contornos vivos de Kurzem.
“Lembro-me da noite em que os alemães entraram na nossa aldeia, colocaram todos os homens em fila e mataram-nos na praça. É a minha primeira memória, foi aí que a minha vida começou”, contou, em conversa com o PONTO FINAL. O que se passou a seguir também é difícil de apagar: a mãe explicou-lhe que o pai tinha sido morto e que, no dia seguinte, seria a vez deles conhecerem o mesmo destino.
Perante o prenúncio de morte, o então pequeno Alex decidiu fugir para a floresta nas imediações da casa onde vivia. No dia seguinte, assistiu ao massacre do seu mundo. E, escondido numa árvore, viu a mãe e os irmãos serem abatidos a tiro. Neste filme de terror, os tempos que se seguiram foram passados na floresta, de aldeia em aldeia. Comia o que aparecia e, mais do que o frio ou a fome, recorda-se que “a pior sensação era a de estar sozinho, o medo que tinha, não havia ninguém para me proteger”.
O homem mau e a máscara ariana
Nesta fuga ditada pelo instinto de sobrevivência, Alex Karzem (que, na altura, tinha outro nome), bateu à porta errada. Pediu comida numa casa onde vivia um nazi. “Só queria um pouco de pão, ou então que me deixasse ir. Percebeu que eu era judeu. Quando tentei fugir, prendeu-me com o pé. Só pensava em fugir, mas não tinha como. Eu era pequeno, ele era um homem grande.”
O sobrevivente lembra-se de ser levado para um local onde estavam outras crianças judias para serem fuziladas. Não sobreviveram para contar o que viram, só Alex, que não percebe porquê. Pediu pão aos seus carcereiros, um deles aproximou-se, levou-o para outro sítio, deu-lhe banho e confirmou a origem. A circuncisão era a certeza de que era judeu. Esse protector – um soldado das Schutzstaffel (SS) da Letónia – disse-lhe para ocultar a sua identidade judia e deu-lhe o nome que ainda usa. Durante 63 anos, Alex Kurzem não contou o segredo a ninguém – nem à mulher e aos seus filhos australianos.
“Não era uma criança diferente, não consigo encontrar nenhuma diferença”, diz, com uma voz quase sussurrada. “Quando a minha mãe me disse que íamos ser mortos, só pensei em fugir. Não consigo perceber porque é que as outras crianças não tentaram fugir. Talvez estivessem demasiado assustadas.” Não que se considere particularmente corajoso: “Não sei o que foi, mas alguma coisa me puxou e fugi. Sou o único sobrevivente deste massacre. É algo em que não posso acreditar.” Morreram 16 mil pessoas.
Os soldados nazis enfiaram-lhe uma farda à sua medida e deram-lhe uma arma do tamanho das suas mãos, que “era só para protecção”. O regimento das SS transformou-o em mascote – um termo que serve para título de um livro publicado pelo seu filho, Mark Kurzem. Alex esteve em frentes de batalha, viu judeus como ele a serem arrastados, humilhados, mortos. Sem ter plena consciência do que estava a acontecer – as pessoas à sua volta falavam uma língua que não a sua, não tinha idade para perceber as razões da morte.
Quando os contornos da guerra começaram a ficar desfavoráveis às tropas nazis, os protectores do jovem judeu entregaram-no a uma família de Riga, capital da Letónia. Os anos que se seguiram foram passados com o empresário da fábrica de chocolate Laima (que ainda existe) e com a sua mulher. Foi figurante num filme de propaganda nazi, cheio de crianças arianas e louras, muito felizes, que reviu mais de meio século depois. Em quase todas as imagens, o mesmo sorriso suave. “Tive que fingir quem era. Chorava por dentro, mas tinha que parecer feliz. Foi uma máscara que consegui criar.” E que o impediu, ao longo de anos, de chorar com lágrimas. “Até mesmo quando ia ao cinema e via um filme que me entristecia.”
A meia verdade
A verdade inteira nunca foi contada à família que o acolheu, simpatizante das forças nazis. Kurzem manteve-se louro, e o seu ar ariano ajudou ao disfarce. Pelo meio, geraram-se dúvidas que duraram de anos e atravessaram continentes. E que já não vão ser esclarecidas. “[Os Lobe] gostavam de mim, mas não sei se era um amor verdadeiro. Sabia que, se lhes dissesse que era judeu, não teriam o mesmo amor por mim. Tive sempre essa dúvida.”
Em 1949, a família adoptiva mudou-se para a Austrália e Alex seguiu com eles. Conta que foi a primeira vez que sentiu a liberdade. E que desejou não ter que voltar à Europa. Era o Velho Continente do pós-guerra: destruído, frio e sinónimo de morte. A mudança para longe significava poder esquecer. Ainda assim, o jovem não podia revelar a sua identidade a quem o tinha acolhido – os Lobe acreditavam na versão do rapaz russo que tinha ficado sem pais.
Foi esta a história que Alex contou a Pat, com quem veio a casar, e que manteve aos três filhos, a quem revelou apenas “meia verdade”. E porque não a verdade inteira? À excepção dos primeiros cinco anos de vida – que se resumem ao beijo de despedida que deu à mãe e à macieira ao pé de casa, mais as imagens do massacre e a fuga – a vida foi passada dentro de uma pele que, não sendo a sua, passou a ser.
“Tinha muita consciência de que tinha que ocultar a minha identidade. Todos estes anos, em tudo o que fiz, tinha que esconder, esconder, esconder... Foi difícil, mas consegui”, explica. “Tinha consciência de que se descobrissem quem era, hoje não estaria aqui. Na altura, qualquer pessoa com quem entrasse em contacto era suspeita”, acrescenta.
Ainda antes de casar, foi tratador de elefantes num circo. Aprendeu depois a reparar televisores e os anos passaram-se assim, na quietude de uma casa em Melbourne onde, durante muito tempo, estiveram escondidas as suas fotografias de judeu disfarçado de soldadinho nazi.
Duas pistas e a história do pai
“O meu pai escreve em maiúsculas e sem qualquer pontuação. Construiu sempre as frases desta forma; cresceu na Europa de Leste durante a Segunda Guerra Mundial e não frequentou a escola”, escreve Mark Kurzem no seu livro, sobre o bilhete que o pai lhe deixou, em 1997, na sua casa de Oxford.
Era a visita menos esperada por Mark. “A minha mãe queria ir-me visitar a Oxford mas o meu pai era relutante: não tinha voltado à Europa desde 1949 e não tinha o menor interesse em regressar”, contextualiza o autor do “The Mascot”. Alex viajou de Melbourne para contar a tal “meia verdade” que faltava e pedir ajuda ao filho. “Queria ir à procura da sua identidade pré-australiana”, explica o descendente no documentário ontem projectado na Universidade de Macau.
Não foi tarefa fácil e alturas houve em que até Mark foi assaltado por dúvidas em relação à história contada pelo pai. As instituições judaicas que procuraram não deram credibilidade ao relato do então sexagenário. Alex Kurzem não se lembrava do nome que teve até aos cinco anos. “Compreendo que seja algo controverso, um rapaz judeu que cresceu junto de nazis”, diz, comentando assim a incredulidade das pessoas a quem contou a sua vida.
Numa destas instituições judaicas, houve uma voluntária que acreditou no sobrevivente. Alex lembrava-se de apenas duas palavras: “Koidanov”, o local onde teria vivido, e “Panok”. A partir da primeira pista, descobriu-se um homem também de Koidanov, e confirmou-se que era a aldeia de Kurzem. No pós-guerra passou a ter outra designação, Dzerzhinsk – daí a dificuldade.
Dá-se então uma coincidência espantosa: o pai deste conterrâneo, nascido em 1947, tinha a mesma profissão que teria o pai de Alex. Mas o progenitor de Kurzem tinha morrido em 1941 e assim se afastam, numa primeira leitura, possíveis laços de família. Algumas investigações depois e já na posse do seu nome verdadeiro – Elya Solomonovich Galperin -, o bielorrusso chegou à conclusão de que tem um meio irmão. Erick Galperin é também filho de Solomon Galperin: naquela noite que é a primeira memória de Alex, o pai escapou ao fuzilamento. Sobreviveu a campos de concentração e, finda a guerra, voltou a Koidanov.
“O meu pai morreu em 1974. Ele não sabia que eu tinha sobrevivido e eu também não sabia que ele tinha sobrevivido. A minha mãe tinha-me dito que ele tinha sido morto na noite em que os alemães entraram na aldeia e mataram todos os homens. Eu não vi, mas presumi que tinha sido morto”, diz. “Quando voltou do campo de concentração e descobriu que a minha família tinha sido massacrada, não sabia que eu tinha fugido.” Alex (ou Elya) admite que, volta e meia, pensa que deveria ter contado a sua história mais cedo. Mas não o quis fazer enquanto os Lobe estiveram vivos. E também porque “não tinha a certeza de quem era, se era um sonho ou um pesadelo”, acrescenta. “Tinha que reunir todos os factos. Estava muito confuso.”
A lição por aprender
Numa história com um final relativamente feliz mas feita de tantos dramas, há ainda mais um: o que está na origem da revelação de Alex Kurzem à sua família e depois ao mundo. “Não foi de repente. Fiquei doente, tive um cancro. Não queria morrer sem um nome, queria encontrar o meu nome verdadeiro. E então pensei que se conseguisse ultrapassar o cancro, começaria à procura da minha identidade. Sobrevivi e isso aconteceu”, explicou ao PONTO FINAL.
Na primeira viagem à aldeia da verdadeira família, o bielorrusso foi acompanhado por uma câmara de filmar australiana, que guardou para a posteridade um regresso doloroso (Hollywood também vai fazer um filme). Descobrem-se familiares afastados e, na casa que um dia foi dele, fotografias da mãe, Anna, e do pai, Solomon. Encontra-se também o significado da palavra “Panok”: era o apelido de uma família que vivia em Koidanov, numa casa junto à sua.
Com provas nas mãos, consegue tornar credível a sua história junto das instituições judaicas que, ainda assim, desconfiam de um judeu criado por nazis e que não pratica qualquer religião, por não acreditar num Deus que mata mães de crianças. No documentário, e sobre a realidade mais terrena, o filho Mark explica que houve algum afastamento de pessoas que, em Melbourne, se relacionavam com o pai. E que ficou um pouco mais só. “Não consigo ter ódio aos nazis. Mataram a minha família mas salvaram-me”, confessa, sublinhando o paradoxo. “O ódio não faz bem a ninguém, para quê alimentar esse tipo de sentimentos?”
Depois de ter passado sessenta anos com um segredo tão bem guardado, Kurzem está agora no registo oposto. O documentário ontem projectado em Macau já correu muitos países e vários festivais. O protagonista tem estado em países diferentes para falar do que viveu. Esteve recentemente no “60 Minutes”; a BBC e a televisão de Moscovo levaram-no mais uma vez a Koidanov para contar, de novo, o que aconteceu. Muitas entrevistas depois de ter ido a Oxford à procura do filho, não se mostra cansado para responder a perguntas.
“Sinto-me privilegiado por haver pessoas que se interessam pela minha história. Estava muito céptico no início, há tantas outras histórias, mas sinto agora que a minha é bastante diferente”, contextualiza. “Fico feliz por as pessoas a analisarem e discutirem o que se passou.”
A dada altura do documentário, filmado há já alguns anos, Alex Kurzem conta que tem “duas pessoas” dentro dele. Agora, há uma terceira, mais apaziguadora. “Sinto que sou australiano. Fui para a Austrália há mais de sessenta anos. Essas duas outras pessoas fazem parte da minha contextualização. Estão lá, mas a pessoa principal é o australiano.”
A família soube conviver bem com a verdade inteira mas Alex diz que talvez tenha sido um “pouco duro” com os filhos, quando ainda eram pequenos e não conheciam o passado do pai. “Os meus filhos tiveram tudo. Tiveram comida... E às vezes não gostavam disto ou daquilo, e eu ficava zangado. Quando era da idade deles, ficava contente por conseguir um bocadinho de pão”, explica, com um sorriso. “Talvez tenha sido demasiado duro, porque não gostava de ver comida estragada. Não perceberam na altura, mas agora percebem”, sublinha.
A parte melhor da verdade sem metades é sentir-se “em paz, saiu um grande fardo dos meus ombros, agora que toda a gente sabe”. Diz ainda que “há muitas pessoas boas no mundo”, mas não deixa de lamentar a dificuldade que o ser humano tem em aprender com as lições do passado. “Pensei que, depois da Segunda Guerra Mundial, as pessoas aprendessem e tivessem outro respeito pelos seres humanos. Mas parece que não teve muito efeito, pois não? Magoa-me ver aldeias queimadas e crianças a morrer em África, incomoda-me e preocupa-me o facto de as pessoas não terem aprendido.”
No fim da sessão na Universidade de Macau, há uma adolescente de origem francesa que se aproxima de Kurzem e lhe conta o passado da avó, uma judia que também sobreviveu. Uma professora explica que os seus avós se conheceram num orfanato no Canadá, adolescentes judeus do outro lado do oceano. Minutos antes, a um miúdo pequenino que surpreendeu a sala perguntando qual o lado mais positivo de tudo o que viveu, Kurzem lembrou a família. “Conheci muitas crianças com pais e eu estava sempre sozinho. Quando não se tem, sente-se mesmo a falta. É muito positivo crescer numa família e ter boas relações com os pais.” E assim falou Elyas, filho de Anna e Solomon, de passagem por Macau, a lembrar que o passado, afinal, não é um país distante.
Há histórias tão incríveis que, contadas, ninguém acredita. Foi o que aconteceu a Alex Kurzem, bielorrusso de origem, filho de judeus. Sobreviveu a um massacre, fugiu com apenas cinco anos, foi salvo pelos nazis que lhe mataram a família. Ao longo de sessenta anos, escondeu a verdadeira identidade. Ao PONTO FINAL, explicou quais as razões que o fizeram tirar a máscara.
Isabel Castro
É um homem de palavras directas, sem rodeios ou metáforas, nem tão pouco lições de moral. Como se a história de vida que é a sua contivesse toda a verdade do mundo, simplesmente por ter acontecido. Fala com uma voz suave mas, não obstante os sessenta anos de inglês da Austrália, ainda se nota a influência da infância na Europa Oriental. Confessa que às vezes lhe faltam as palavras. Foram muitas línguas para alguém que diz ter “três pessoas” dentro de si.
Não há ninguém com uma história como a de Alex Kurzem. O próprio admite o carácter “invulgar” do seu relato. Conhecem-se descrições de crianças judias que sobreviveram ao Holocausto “mas que foram salvas por outros judeus”. Acontece que Kurzem escapou à morte porque um soldado nazi o escolheu para seu protegido.
“É uma pergunta que continuo a fazer a mim mesmo. Não sei porquê. Mataram todos os miúdos mas deixaram-me viver”, disse ontem na Universidade de Macau, onde esteve para falar da sua vida. O Departamento de Inglês da instituição de ensino superior aproveitou a estadia de Alex Kurzem em Hong Kong e trouxe-o até ao território. Antes de responder a uma casa cheia de estudantes e professores universitários, mas também de alunos mais pequenos, foi projectado um documentário sobre o seu peculiar percurso.
Alex Karzem não sabe a idade nem o local exacto do seu nascimento, mas deve andar agora à volta dos 74 anos. Em 1941, quando tinha apenas cinco anos de idade, a aldeia onde vivia foi invadida pelas tropas alemãs. Em plena Segunda Guerra Mundial, o que aconteceu na localidade bielorrussa foi uma repetição do que se viu em diferentes países europeus. E o que aconteceu é, na realidade, a primeira memória de contornos vivos de Kurzem.
“Lembro-me da noite em que os alemães entraram na nossa aldeia, colocaram todos os homens em fila e mataram-nos na praça. É a minha primeira memória, foi aí que a minha vida começou”, contou, em conversa com o PONTO FINAL. O que se passou a seguir também é difícil de apagar: a mãe explicou-lhe que o pai tinha sido morto e que, no dia seguinte, seria a vez deles conhecerem o mesmo destino.
Perante o prenúncio de morte, o então pequeno Alex decidiu fugir para a floresta nas imediações da casa onde vivia. No dia seguinte, assistiu ao massacre do seu mundo. E, escondido numa árvore, viu a mãe e os irmãos serem abatidos a tiro. Neste filme de terror, os tempos que se seguiram foram passados na floresta, de aldeia em aldeia. Comia o que aparecia e, mais do que o frio ou a fome, recorda-se que “a pior sensação era a de estar sozinho, o medo que tinha, não havia ninguém para me proteger”.
O homem mau e a máscara ariana
Nesta fuga ditada pelo instinto de sobrevivência, Alex Karzem (que, na altura, tinha outro nome), bateu à porta errada. Pediu comida numa casa onde vivia um nazi. “Só queria um pouco de pão, ou então que me deixasse ir. Percebeu que eu era judeu. Quando tentei fugir, prendeu-me com o pé. Só pensava em fugir, mas não tinha como. Eu era pequeno, ele era um homem grande.”
O sobrevivente lembra-se de ser levado para um local onde estavam outras crianças judias para serem fuziladas. Não sobreviveram para contar o que viram, só Alex, que não percebe porquê. Pediu pão aos seus carcereiros, um deles aproximou-se, levou-o para outro sítio, deu-lhe banho e confirmou a origem. A circuncisão era a certeza de que era judeu. Esse protector – um soldado das Schutzstaffel (SS) da Letónia – disse-lhe para ocultar a sua identidade judia e deu-lhe o nome que ainda usa. Durante 63 anos, Alex Kurzem não contou o segredo a ninguém – nem à mulher e aos seus filhos australianos.
“Não era uma criança diferente, não consigo encontrar nenhuma diferença”, diz, com uma voz quase sussurrada. “Quando a minha mãe me disse que íamos ser mortos, só pensei em fugir. Não consigo perceber porque é que as outras crianças não tentaram fugir. Talvez estivessem demasiado assustadas.” Não que se considere particularmente corajoso: “Não sei o que foi, mas alguma coisa me puxou e fugi. Sou o único sobrevivente deste massacre. É algo em que não posso acreditar.” Morreram 16 mil pessoas.
Os soldados nazis enfiaram-lhe uma farda à sua medida e deram-lhe uma arma do tamanho das suas mãos, que “era só para protecção”. O regimento das SS transformou-o em mascote – um termo que serve para título de um livro publicado pelo seu filho, Mark Kurzem. Alex esteve em frentes de batalha, viu judeus como ele a serem arrastados, humilhados, mortos. Sem ter plena consciência do que estava a acontecer – as pessoas à sua volta falavam uma língua que não a sua, não tinha idade para perceber as razões da morte.
Quando os contornos da guerra começaram a ficar desfavoráveis às tropas nazis, os protectores do jovem judeu entregaram-no a uma família de Riga, capital da Letónia. Os anos que se seguiram foram passados com o empresário da fábrica de chocolate Laima (que ainda existe) e com a sua mulher. Foi figurante num filme de propaganda nazi, cheio de crianças arianas e louras, muito felizes, que reviu mais de meio século depois. Em quase todas as imagens, o mesmo sorriso suave. “Tive que fingir quem era. Chorava por dentro, mas tinha que parecer feliz. Foi uma máscara que consegui criar.” E que o impediu, ao longo de anos, de chorar com lágrimas. “Até mesmo quando ia ao cinema e via um filme que me entristecia.”
A meia verdade
A verdade inteira nunca foi contada à família que o acolheu, simpatizante das forças nazis. Kurzem manteve-se louro, e o seu ar ariano ajudou ao disfarce. Pelo meio, geraram-se dúvidas que duraram de anos e atravessaram continentes. E que já não vão ser esclarecidas. “[Os Lobe] gostavam de mim, mas não sei se era um amor verdadeiro. Sabia que, se lhes dissesse que era judeu, não teriam o mesmo amor por mim. Tive sempre essa dúvida.”
Em 1949, a família adoptiva mudou-se para a Austrália e Alex seguiu com eles. Conta que foi a primeira vez que sentiu a liberdade. E que desejou não ter que voltar à Europa. Era o Velho Continente do pós-guerra: destruído, frio e sinónimo de morte. A mudança para longe significava poder esquecer. Ainda assim, o jovem não podia revelar a sua identidade a quem o tinha acolhido – os Lobe acreditavam na versão do rapaz russo que tinha ficado sem pais.
Foi esta a história que Alex contou a Pat, com quem veio a casar, e que manteve aos três filhos, a quem revelou apenas “meia verdade”. E porque não a verdade inteira? À excepção dos primeiros cinco anos de vida – que se resumem ao beijo de despedida que deu à mãe e à macieira ao pé de casa, mais as imagens do massacre e a fuga – a vida foi passada dentro de uma pele que, não sendo a sua, passou a ser.
“Tinha muita consciência de que tinha que ocultar a minha identidade. Todos estes anos, em tudo o que fiz, tinha que esconder, esconder, esconder... Foi difícil, mas consegui”, explica. “Tinha consciência de que se descobrissem quem era, hoje não estaria aqui. Na altura, qualquer pessoa com quem entrasse em contacto era suspeita”, acrescenta.
Ainda antes de casar, foi tratador de elefantes num circo. Aprendeu depois a reparar televisores e os anos passaram-se assim, na quietude de uma casa em Melbourne onde, durante muito tempo, estiveram escondidas as suas fotografias de judeu disfarçado de soldadinho nazi.
Duas pistas e a história do pai
“O meu pai escreve em maiúsculas e sem qualquer pontuação. Construiu sempre as frases desta forma; cresceu na Europa de Leste durante a Segunda Guerra Mundial e não frequentou a escola”, escreve Mark Kurzem no seu livro, sobre o bilhete que o pai lhe deixou, em 1997, na sua casa de Oxford.
Era a visita menos esperada por Mark. “A minha mãe queria ir-me visitar a Oxford mas o meu pai era relutante: não tinha voltado à Europa desde 1949 e não tinha o menor interesse em regressar”, contextualiza o autor do “The Mascot”. Alex viajou de Melbourne para contar a tal “meia verdade” que faltava e pedir ajuda ao filho. “Queria ir à procura da sua identidade pré-australiana”, explica o descendente no documentário ontem projectado na Universidade de Macau.
Não foi tarefa fácil e alturas houve em que até Mark foi assaltado por dúvidas em relação à história contada pelo pai. As instituições judaicas que procuraram não deram credibilidade ao relato do então sexagenário. Alex Kurzem não se lembrava do nome que teve até aos cinco anos. “Compreendo que seja algo controverso, um rapaz judeu que cresceu junto de nazis”, diz, comentando assim a incredulidade das pessoas a quem contou a sua vida.
Numa destas instituições judaicas, houve uma voluntária que acreditou no sobrevivente. Alex lembrava-se de apenas duas palavras: “Koidanov”, o local onde teria vivido, e “Panok”. A partir da primeira pista, descobriu-se um homem também de Koidanov, e confirmou-se que era a aldeia de Kurzem. No pós-guerra passou a ter outra designação, Dzerzhinsk – daí a dificuldade.
Dá-se então uma coincidência espantosa: o pai deste conterrâneo, nascido em 1947, tinha a mesma profissão que teria o pai de Alex. Mas o progenitor de Kurzem tinha morrido em 1941 e assim se afastam, numa primeira leitura, possíveis laços de família. Algumas investigações depois e já na posse do seu nome verdadeiro – Elya Solomonovich Galperin -, o bielorrusso chegou à conclusão de que tem um meio irmão. Erick Galperin é também filho de Solomon Galperin: naquela noite que é a primeira memória de Alex, o pai escapou ao fuzilamento. Sobreviveu a campos de concentração e, finda a guerra, voltou a Koidanov.
“O meu pai morreu em 1974. Ele não sabia que eu tinha sobrevivido e eu também não sabia que ele tinha sobrevivido. A minha mãe tinha-me dito que ele tinha sido morto na noite em que os alemães entraram na aldeia e mataram todos os homens. Eu não vi, mas presumi que tinha sido morto”, diz. “Quando voltou do campo de concentração e descobriu que a minha família tinha sido massacrada, não sabia que eu tinha fugido.” Alex (ou Elya) admite que, volta e meia, pensa que deveria ter contado a sua história mais cedo. Mas não o quis fazer enquanto os Lobe estiveram vivos. E também porque “não tinha a certeza de quem era, se era um sonho ou um pesadelo”, acrescenta. “Tinha que reunir todos os factos. Estava muito confuso.”
A lição por aprender
Numa história com um final relativamente feliz mas feita de tantos dramas, há ainda mais um: o que está na origem da revelação de Alex Kurzem à sua família e depois ao mundo. “Não foi de repente. Fiquei doente, tive um cancro. Não queria morrer sem um nome, queria encontrar o meu nome verdadeiro. E então pensei que se conseguisse ultrapassar o cancro, começaria à procura da minha identidade. Sobrevivi e isso aconteceu”, explicou ao PONTO FINAL.
Na primeira viagem à aldeia da verdadeira família, o bielorrusso foi acompanhado por uma câmara de filmar australiana, que guardou para a posteridade um regresso doloroso (Hollywood também vai fazer um filme). Descobrem-se familiares afastados e, na casa que um dia foi dele, fotografias da mãe, Anna, e do pai, Solomon. Encontra-se também o significado da palavra “Panok”: era o apelido de uma família que vivia em Koidanov, numa casa junto à sua.
Com provas nas mãos, consegue tornar credível a sua história junto das instituições judaicas que, ainda assim, desconfiam de um judeu criado por nazis e que não pratica qualquer religião, por não acreditar num Deus que mata mães de crianças. No documentário, e sobre a realidade mais terrena, o filho Mark explica que houve algum afastamento de pessoas que, em Melbourne, se relacionavam com o pai. E que ficou um pouco mais só. “Não consigo ter ódio aos nazis. Mataram a minha família mas salvaram-me”, confessa, sublinhando o paradoxo. “O ódio não faz bem a ninguém, para quê alimentar esse tipo de sentimentos?”
Depois de ter passado sessenta anos com um segredo tão bem guardado, Kurzem está agora no registo oposto. O documentário ontem projectado em Macau já correu muitos países e vários festivais. O protagonista tem estado em países diferentes para falar do que viveu. Esteve recentemente no “60 Minutes”; a BBC e a televisão de Moscovo levaram-no mais uma vez a Koidanov para contar, de novo, o que aconteceu. Muitas entrevistas depois de ter ido a Oxford à procura do filho, não se mostra cansado para responder a perguntas.
“Sinto-me privilegiado por haver pessoas que se interessam pela minha história. Estava muito céptico no início, há tantas outras histórias, mas sinto agora que a minha é bastante diferente”, contextualiza. “Fico feliz por as pessoas a analisarem e discutirem o que se passou.”
A dada altura do documentário, filmado há já alguns anos, Alex Kurzem conta que tem “duas pessoas” dentro dele. Agora, há uma terceira, mais apaziguadora. “Sinto que sou australiano. Fui para a Austrália há mais de sessenta anos. Essas duas outras pessoas fazem parte da minha contextualização. Estão lá, mas a pessoa principal é o australiano.”
A família soube conviver bem com a verdade inteira mas Alex diz que talvez tenha sido um “pouco duro” com os filhos, quando ainda eram pequenos e não conheciam o passado do pai. “Os meus filhos tiveram tudo. Tiveram comida... E às vezes não gostavam disto ou daquilo, e eu ficava zangado. Quando era da idade deles, ficava contente por conseguir um bocadinho de pão”, explica, com um sorriso. “Talvez tenha sido demasiado duro, porque não gostava de ver comida estragada. Não perceberam na altura, mas agora percebem”, sublinha.
A parte melhor da verdade sem metades é sentir-se “em paz, saiu um grande fardo dos meus ombros, agora que toda a gente sabe”. Diz ainda que “há muitas pessoas boas no mundo”, mas não deixa de lamentar a dificuldade que o ser humano tem em aprender com as lições do passado. “Pensei que, depois da Segunda Guerra Mundial, as pessoas aprendessem e tivessem outro respeito pelos seres humanos. Mas parece que não teve muito efeito, pois não? Magoa-me ver aldeias queimadas e crianças a morrer em África, incomoda-me e preocupa-me o facto de as pessoas não terem aprendido.”
No fim da sessão na Universidade de Macau, há uma adolescente de origem francesa que se aproxima de Kurzem e lhe conta o passado da avó, uma judia que também sobreviveu. Uma professora explica que os seus avós se conheceram num orfanato no Canadá, adolescentes judeus do outro lado do oceano. Minutos antes, a um miúdo pequenino que surpreendeu a sala perguntando qual o lado mais positivo de tudo o que viveu, Kurzem lembrou a família. “Conheci muitas crianças com pais e eu estava sempre sozinho. Quando não se tem, sente-se mesmo a falta. É muito positivo crescer numa família e ter boas relações com os pais.” E assim falou Elyas, filho de Anna e Solomon, de passagem por Macau, a lembrar que o passado, afinal, não é um país distante.