“O objectivo principal é provocar o medo”
Sem papas na língua, António Katchi aponta o dedo ao Governo. Em entrevista ao PONTO FINAL, o jurista radicado na RAEM lança duras críticas ao trabalho do Executivo, nas mais diversas áreas, e destaca os perigos da proposta de lei que visa regulamentar o Artigo 23º.
Luciana Leitão
- Dada a recente apresentação da proposta de lei do artigo 23º, que direitos fundamentais podem vir a estar em risco?
António Katchi - Em primeiro lugar, uma lei que venha regular esta matéria, sendo de conteúdo penal, necessariamente coloca restrições aos direitos fundamentais. O problema é que essas restrições têm de se harmonizar com certos princípios que também são normalmente reconhecidos – pelo menos, nos Estados de Direito democráticos -, como sejam a necessidade, adequação, proporcionalidade e salvaguarda do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. E, portanto, a preocupação que os juristas terão em relação a esta lei será a de saber se respeitam esses princípios.
- Na sua opinião, as restrições impostas são proporcionais e adequadas?
A.K. - Não podemos ignorar aquilo que tem sido a prática política, administrativa e jurisprudencial na República Popular da China e em Macau. Gostaria de lembrar alguns episódios que demonstram como, mesmo uma lei, redigida, eventualmente, com boas intenções, pode ser utilizada abusivamente para cercear os direitos fundamentais. Penso que as pessoas se lembram daquilo que se passou com os manifestantes vindos de Hong Kong e também com os adeptos das Falun Gong, que protestaram no dia da transferência de soberania – e também no primeiro aniversário da transferência de soberania. Como se sabe, a PSP reprimiu esses indivíduos, alegando que, como a legislação afirma que os residentes de Macau têm o direito a fazê-lo, então, os não residentes não têm o direito a manifestarem-se. Ou seja, a lei foi feita claramente com o objectivo de proteger a liberdade de manifestação, e duvido que alguma vez estivesse na mente dos legisladores que aquele diploma viesse a servir para impedir os não residentes de terem acesso a esse direito.
- Quanto ao conteúdo da própria lei, quais são os pontos mais problemáticos?
A.K. - Gostaria de referir o artigo 4º, que alude à subversão contra o Governo Popular Central. A primeira objecção é a de que há uma referência “à prática de outros meios ilícitos graves”, mas neste artigo não se especifica o que são. Por que motivo não há uma tipificação desses meios ilícitos graves, quando, no artigo 3º [relativo à secessão], essa tipificação foi feita? O Governo, no seu documento de consulta, diz que este conceito do artigo 4º deve ser entendido de acordo com o que está no artigo 3º, mas não basta. Há aqui o risco de o conceito ser interpretado de uma forma muito lata e abusiva. Outro problema deste artigo 4º tem a ver com a expressão Governo Popular Central. Em sentido mais rigoroso, significa o Conselho de Estado – ou seja, o órgão executivo do Governo Central da República Popular da China -, mas então podemos perguntar: se alguém, ao invés de tentar derrubar o Governo Popular Central, tentar derrubar a Assembleia Popular Nacional (APN), o Comité Permanente da APN ou o Presidente da RPC, será punido ao abrigo dessa disposição? A terceira questão é a moldura penal – prevê-se aqui uma pena de prisão de 15 a 25 anos, o que é excessivo, tendo em conta que visa aplicar-se a pessoas que praticam estes actos aqui previstos, mas sem terem cometido, por exemplo, qualquer crime de homicídio ou de ofensas corporais. É excessiva, injustificada, completamente desproporcional em relação ao bem jurídico que se pretende aqui proteger.
- Parece-lhe que existe uma desproporcionalidade entre a moldura penal da prática de crime de subversão contra o Governo Popular Central e do tipo legal idêntico contra as autoridades da RAEM?
A.K. - Em relação à subversão dirigida às autoridades de Macau, já existe uma norma no Código Penal de Macau. Diz o artigo 297º que, quem por meio de violência ou ameaça de violência tentar destruir, alterar ou subverter o sistema político, económico ou social estabelecido em Macau, é punido com pena de prisão de três a dez anos. Ora, isto é muito menos do que os 15 a 25 anos que estão previstos nesta proposta de lei. O Governo podia, simplesmente, adoptar uma norma idêntica ao artigo 297º, nº1 do Código Penal, para a República Popular da China.
- Quanto ao artigo 6º que pune a subtracção do segredo de Estado, acha que pode, por exemplo, constituir um obstáculo ao trabalho dos jornalistas? Imaginemos que um profissional divulga num artigo o nome de um futuro membro do Executivo...
A.K. - O artigo 6º da proposta de lei tem algum cuidado quando afirma que deve ser punido quem subtrair segredo de Estado, pondo em perigo ou prejudicando o Estado relativo à independência nacional, unidade e segurança interna e externa. Penso que se houvesse uma interpretação razoável desta norma, não seria possível condenar, por exemplo, um jornalista, nestes termos. Só que, devido ao problema das práticas administrativas, jurídicas e jurisdicionais, não seria de excluir o risco de que esse segredo – ou que a divulgação desse segredo – prejudicaria os interesses do Estado relativos à segurança interna ou externa da República Popular da China. Quero só realçar uma coisa. Houve alguns juristas que afirmaram que a qualificação de determinado facto como segredo de Estado estaria sujeita a avaliação por parte dos tribunais de Macau – isso não me parece corresponder à verdade legal. Quem faz essa qualificação são as autoridades centrais e vincula os juízes de Macau.
- Tratando-se de uma norma que carece de ser legislada para surtir efeitos, esta proposta de lei do artigo 23º tinha de ser feita agora?
A.K. - A Lei Básica manda, de facto, fazer esta lei. O Artigo 23º, que é uma norma constitucional não exequível, só pode ser executado mediante lei ordinária. Constitucionalmente, o Governo estava obrigado a apresentar uma proposta deste teor, mas a verdade é que a Lei Básica não fixa qualquer prazo. Por isso, não haveria uma obrigação de as autoridades da RAEM apresentarem esta proposta de lei agora. Repare-se que, tal como existe a obrigação de dar execução a este artigo, também existe a obrigação de, por exemplo, dar execução legislativa às convenções da Organização Internacional do Trabalho vigentes em Macau. No entanto, não se tem visto isso. Por exemplo, há uma convenção da OIT vigente em Macau que prevê o estabelecimento de um salário mínimo, e isso nunca foi feito em Macau.
- Esta proposta de lei surge apenas para satisfazer as exigências da República Popular da China...
A.K. - Sim, surge para satisfazer as exigências da República Popular da China que, como qualquer ditadura, sente necessidade de reforçar a sua segurança. Na verdade, qualquer regime precisa de garantir a sua segurança. Agora, é normal que as pessoas que defendam a democracia não apoiem tanto a auto-defesa de um regime ditatorial, porque têm a consciência de que vem criar oportunidades de maior repressão e dificultar as lutas sociais. Penso que o objectivo principal desta lei é provocar o medo – que as pessoas tenham medo de se envolver em actividades políticas de carácter contestatário. O objectivo é intimidar a população, é fazer com que as pessoas fiquem com medo de se envolver em actividades político-partidárias.
- Se isso é verdade, e se esta proposta de lei surge apenas para causar o medo, por que não houve em Macau a mesma reacção que em Hong Kong?
A.K. - Ainda não sucedeu, mas é possível que venha a acontecer. Actualmente, a lei está em consulta pública. É óbvio que poderia haver uma manifestação até durante este processo. Por outro lado, decorrendo um período de consulta pública – ainda que pense que seja curto -, parece-me razoável que antes de se manifestarem, as pessoas vejam como é que o processo decorre, quais são as melhorias que vão ser feitas a esta proposta de lei, e depois, eventualmente, as organizações políticas e sociais que, ainda assim, discordem do conteúdo e da oportunidade, poderão, eventualmente, convocar manifestações.
- Estão a decorrer as sessões de discussão das Linhas de Acção Governativa para 2009, o último ano do mandato do Executivo liderado por Edmund HO. Quais são os pontos que gostaria de ter visto abordados?
A.K. - Antes de responder a essa pergunta, gostaria de deixar claro que não tenho qualquer ilusão a respeito deste Governo. Nunca tive. Gostaria que tivesse sido, desde logo, discutida uma nova revisão da lei do trabalho que correspondesse às necessidades dos trabalhadores - no mínimo, com o objectivo de estabelecer a conformidade da lei vigente e os padrões mínimos consagrados nas convenções internacionais em vigor em Macau. A lei do trabalho que vigorava era retrógrada e injusta, mas a nova não vem trazer quase nada de positivo aos trabalhadores. Como pode um Governo que suscita questões como a delinquência juvenil propor a manutenção de um regime de tempo de trabalho que continua a considerar as 48 horas semanais como um horário normal de trabalho e que prevê a possibilidade de o tempo total de trabalho por dia, incluindo as horas extraordinárias, chegar às 12 horas? É muito hipócrita propor uma legislação com este conteúdo e depois andar sempre a exprimir preocupações com a delinquência juvenil, com o consumo de drogas e o insucesso escolar. Outro problema que gostaria de ver abordado é aquele que se prende com os rendimentos dos trabalhadores da Administração Pública, um dos principais alvos de ataque deste Governo. O poder de compra tem diminuído devido à falta de actualização dos salários em função da inflação, quer em virtude do imposto profissional que foi estendido aos vencimentos da Função Pública, quer também por virtude ao recurso de formas mais precárias e menos regulamentadas de recrutamento.
- Que balanço faz do trabalho deste Governo?
A.K. - O balanço é totalmente negativo, em todas as frentes. Desde logo, no plano da organização política. Não houve qualquer avanço a caminho da democratização do regime. Aliás, gostaria de relembrar que a Lei Básica prevê nos seus anexos I e II a possibilidade de os métodos de escolha do Chefe do Executivo e dos deputados à Assembleia Legislativa serem alterados para as eleições de 2009.
- O que já não vai acontecer...
A.K. - Isso poderia ter sido incluído na revisão da legislação eleitoral feita este ano, mas não aconteceu. Um dos argumentos [invocados pelo Governo], o de que a população, na resposta aos inquéritos, não suscitou esse pedido, nem merece comentário. Como as propostas apresentadas não tocaram minimamente nos métodos de escolha do Chefe do Executivo e dos deputados, mas sim apenas aspectos relativos ao recenseamento eleitoral e fraude, naturalmente que as sugestões das pessoas focavam esses assuntos. Quanto ao outro argumento – o de que essas alterações não dependiam apenas da vontade das autoridades de Macau, mas também das autoridades centrais -, isso não corresponde totalmente ao que está nos Anexos I e II da Lei Básica. Em relação ao método de escolha do Chefe do Executivo, é verdade que a lei que viesse a ser aprovada em Macau, no sentido de alterar as regras, de forma a que, por exemplo, fosse estabelecido o sufrágio universal, teria de ser enviada ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional para efeitos de ratificação. Em relação ao método de escolha dos deputados à Assembleia Legislativa, isso é diferente, porque o Anexo II prevê que a lei que venha a aprovar essas alterações seja comunicada ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional para efeitos de registo, não impediria a entrada em vigor da lei. Penso também que se tem assistido a uma progressiva deterioração dos direitos fundamentais. Isso é visível em várias circunstâncias – foi visível, por exemplo, em manifestações como a do Primeiro de Maio de 2007. Além disso, o autoritarismo no seio da Administração Pública aumentou significativamente e começam a vir agora a lume despedimentos arbitrários.
- E quanto à componente económica?
A.K. – Considero que o balanço da actuação do Governo é negativo. É óbvio que se entendermos que o desenvolvimento económico se mede apenas pelo PIB ou mesmo pelo valor do PIB per capita, aí dir-se-á que houve desenvolvimento económico, mas penso que não é nessa perspectiva que se deve avaliar. De facto, a economia de Macau tornou-se muito mais dependente do jogo. Por outro lado, o Governo permitiu a especulação imobiliária e não tomou qualquer medida para combater a inflação, remeteu-se sempre ao argumento de que estamos numa economia liberal e de que não pode intervir. Na minha opinião, deveria haver um regime legal que impusesse limites à fixação de preços e rendas dos imóveis.
- E na área social?
A.K. - O Governo falhou redondamente. Não aproveitou a oportunidade de, através da legislação laboral, contribuir para um sistema mais justo. Por outro lado, era necessário uma melhoria significativa no sistema de segurança social, além de ser visível que o sistema de saúde se tem vindo a degradar. Continua a haver um sistema de ensino praticamente idêntico ao que existia antes da transferência de soberania. Falando, por exemplo, do aspecto ambiental, assistiu-se a um agravamento da poluição e a urbanização piorou muito.
- Façamos um exercício de futurologia. Quem será o próximo Chefe do Executivo da RAEM?
A.K. – O regime oligárquico definido, tal como se encontra na Lei Básica e na legislação eleitoral, faz com que o Chefe do Executivo, com toda a probabilidade, seja escolhido dentre a burguesia capitalista ou que, pelo menos, seja alguém que recolha o seu apoio. Independentemente das características pessoais de quem venha a ser escolhido, a sua linha política não poderá ser muito diferente da que tem vindo a ser seguida por este Governo. Com toda a sinceridade, não faço a menor ideia e digo que, entre as pessoas que têm sido apontadas, não tenho a menor preferência. Para mim, vão todos seguir a mesma política.
- Um dos pontos que manchou a actuação do Governo foi o caso Ao Man Long. Tendo em conta que, segundo as suas próprias palavras, o próximo Chefe do Executivo será um membro da burguesia capitalista, acha que casos como este se poderão repetir?
A.K. - Sim. Contudo, se alguém tentar obter ganhos através de métodos de corrupção, tentará ser mais cauteloso. Mas o risco de corrupção é muito mais forte num regime oligárquico como este. Existe sempre aqui tráfico de influência entre os governantes e os empresários. Se, por exemplo, as obras públicas fossem apenas atribuídas a uma empresa pública de construção civil, desapareceria um dos terrenos férteis de corrupção.
- Quem gostaria de ver como Chefe do Executivo?
A.K. - Este regime é tão anti-democrático que alguém com quem me identificasse minimamente não iria ser Chefe do Executivo, a não ser no caso excepcional de essa pessoa concorrer ao cargo com o objectivo de, no mais curto prazo possível, promover a transição democrática.
Sem papas na língua, António Katchi aponta o dedo ao Governo. Em entrevista ao PONTO FINAL, o jurista radicado na RAEM lança duras críticas ao trabalho do Executivo, nas mais diversas áreas, e destaca os perigos da proposta de lei que visa regulamentar o Artigo 23º.
Luciana Leitão
- Dada a recente apresentação da proposta de lei do artigo 23º, que direitos fundamentais podem vir a estar em risco?
António Katchi - Em primeiro lugar, uma lei que venha regular esta matéria, sendo de conteúdo penal, necessariamente coloca restrições aos direitos fundamentais. O problema é que essas restrições têm de se harmonizar com certos princípios que também são normalmente reconhecidos – pelo menos, nos Estados de Direito democráticos -, como sejam a necessidade, adequação, proporcionalidade e salvaguarda do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. E, portanto, a preocupação que os juristas terão em relação a esta lei será a de saber se respeitam esses princípios.
- Na sua opinião, as restrições impostas são proporcionais e adequadas?
A.K. - Não podemos ignorar aquilo que tem sido a prática política, administrativa e jurisprudencial na República Popular da China e em Macau. Gostaria de lembrar alguns episódios que demonstram como, mesmo uma lei, redigida, eventualmente, com boas intenções, pode ser utilizada abusivamente para cercear os direitos fundamentais. Penso que as pessoas se lembram daquilo que se passou com os manifestantes vindos de Hong Kong e também com os adeptos das Falun Gong, que protestaram no dia da transferência de soberania – e também no primeiro aniversário da transferência de soberania. Como se sabe, a PSP reprimiu esses indivíduos, alegando que, como a legislação afirma que os residentes de Macau têm o direito a fazê-lo, então, os não residentes não têm o direito a manifestarem-se. Ou seja, a lei foi feita claramente com o objectivo de proteger a liberdade de manifestação, e duvido que alguma vez estivesse na mente dos legisladores que aquele diploma viesse a servir para impedir os não residentes de terem acesso a esse direito.
- Quanto ao conteúdo da própria lei, quais são os pontos mais problemáticos?
A.K. - Gostaria de referir o artigo 4º, que alude à subversão contra o Governo Popular Central. A primeira objecção é a de que há uma referência “à prática de outros meios ilícitos graves”, mas neste artigo não se especifica o que são. Por que motivo não há uma tipificação desses meios ilícitos graves, quando, no artigo 3º [relativo à secessão], essa tipificação foi feita? O Governo, no seu documento de consulta, diz que este conceito do artigo 4º deve ser entendido de acordo com o que está no artigo 3º, mas não basta. Há aqui o risco de o conceito ser interpretado de uma forma muito lata e abusiva. Outro problema deste artigo 4º tem a ver com a expressão Governo Popular Central. Em sentido mais rigoroso, significa o Conselho de Estado – ou seja, o órgão executivo do Governo Central da República Popular da China -, mas então podemos perguntar: se alguém, ao invés de tentar derrubar o Governo Popular Central, tentar derrubar a Assembleia Popular Nacional (APN), o Comité Permanente da APN ou o Presidente da RPC, será punido ao abrigo dessa disposição? A terceira questão é a moldura penal – prevê-se aqui uma pena de prisão de 15 a 25 anos, o que é excessivo, tendo em conta que visa aplicar-se a pessoas que praticam estes actos aqui previstos, mas sem terem cometido, por exemplo, qualquer crime de homicídio ou de ofensas corporais. É excessiva, injustificada, completamente desproporcional em relação ao bem jurídico que se pretende aqui proteger.
- Parece-lhe que existe uma desproporcionalidade entre a moldura penal da prática de crime de subversão contra o Governo Popular Central e do tipo legal idêntico contra as autoridades da RAEM?
A.K. - Em relação à subversão dirigida às autoridades de Macau, já existe uma norma no Código Penal de Macau. Diz o artigo 297º que, quem por meio de violência ou ameaça de violência tentar destruir, alterar ou subverter o sistema político, económico ou social estabelecido em Macau, é punido com pena de prisão de três a dez anos. Ora, isto é muito menos do que os 15 a 25 anos que estão previstos nesta proposta de lei. O Governo podia, simplesmente, adoptar uma norma idêntica ao artigo 297º, nº1 do Código Penal, para a República Popular da China.
- Quanto ao artigo 6º que pune a subtracção do segredo de Estado, acha que pode, por exemplo, constituir um obstáculo ao trabalho dos jornalistas? Imaginemos que um profissional divulga num artigo o nome de um futuro membro do Executivo...
A.K. - O artigo 6º da proposta de lei tem algum cuidado quando afirma que deve ser punido quem subtrair segredo de Estado, pondo em perigo ou prejudicando o Estado relativo à independência nacional, unidade e segurança interna e externa. Penso que se houvesse uma interpretação razoável desta norma, não seria possível condenar, por exemplo, um jornalista, nestes termos. Só que, devido ao problema das práticas administrativas, jurídicas e jurisdicionais, não seria de excluir o risco de que esse segredo – ou que a divulgação desse segredo – prejudicaria os interesses do Estado relativos à segurança interna ou externa da República Popular da China. Quero só realçar uma coisa. Houve alguns juristas que afirmaram que a qualificação de determinado facto como segredo de Estado estaria sujeita a avaliação por parte dos tribunais de Macau – isso não me parece corresponder à verdade legal. Quem faz essa qualificação são as autoridades centrais e vincula os juízes de Macau.
- Tratando-se de uma norma que carece de ser legislada para surtir efeitos, esta proposta de lei do artigo 23º tinha de ser feita agora?
A.K. - A Lei Básica manda, de facto, fazer esta lei. O Artigo 23º, que é uma norma constitucional não exequível, só pode ser executado mediante lei ordinária. Constitucionalmente, o Governo estava obrigado a apresentar uma proposta deste teor, mas a verdade é que a Lei Básica não fixa qualquer prazo. Por isso, não haveria uma obrigação de as autoridades da RAEM apresentarem esta proposta de lei agora. Repare-se que, tal como existe a obrigação de dar execução a este artigo, também existe a obrigação de, por exemplo, dar execução legislativa às convenções da Organização Internacional do Trabalho vigentes em Macau. No entanto, não se tem visto isso. Por exemplo, há uma convenção da OIT vigente em Macau que prevê o estabelecimento de um salário mínimo, e isso nunca foi feito em Macau.
- Esta proposta de lei surge apenas para satisfazer as exigências da República Popular da China...
A.K. - Sim, surge para satisfazer as exigências da República Popular da China que, como qualquer ditadura, sente necessidade de reforçar a sua segurança. Na verdade, qualquer regime precisa de garantir a sua segurança. Agora, é normal que as pessoas que defendam a democracia não apoiem tanto a auto-defesa de um regime ditatorial, porque têm a consciência de que vem criar oportunidades de maior repressão e dificultar as lutas sociais. Penso que o objectivo principal desta lei é provocar o medo – que as pessoas tenham medo de se envolver em actividades políticas de carácter contestatário. O objectivo é intimidar a população, é fazer com que as pessoas fiquem com medo de se envolver em actividades político-partidárias.
- Se isso é verdade, e se esta proposta de lei surge apenas para causar o medo, por que não houve em Macau a mesma reacção que em Hong Kong?
A.K. - Ainda não sucedeu, mas é possível que venha a acontecer. Actualmente, a lei está em consulta pública. É óbvio que poderia haver uma manifestação até durante este processo. Por outro lado, decorrendo um período de consulta pública – ainda que pense que seja curto -, parece-me razoável que antes de se manifestarem, as pessoas vejam como é que o processo decorre, quais são as melhorias que vão ser feitas a esta proposta de lei, e depois, eventualmente, as organizações políticas e sociais que, ainda assim, discordem do conteúdo e da oportunidade, poderão, eventualmente, convocar manifestações.
- Estão a decorrer as sessões de discussão das Linhas de Acção Governativa para 2009, o último ano do mandato do Executivo liderado por Edmund HO. Quais são os pontos que gostaria de ter visto abordados?
A.K. - Antes de responder a essa pergunta, gostaria de deixar claro que não tenho qualquer ilusão a respeito deste Governo. Nunca tive. Gostaria que tivesse sido, desde logo, discutida uma nova revisão da lei do trabalho que correspondesse às necessidades dos trabalhadores - no mínimo, com o objectivo de estabelecer a conformidade da lei vigente e os padrões mínimos consagrados nas convenções internacionais em vigor em Macau. A lei do trabalho que vigorava era retrógrada e injusta, mas a nova não vem trazer quase nada de positivo aos trabalhadores. Como pode um Governo que suscita questões como a delinquência juvenil propor a manutenção de um regime de tempo de trabalho que continua a considerar as 48 horas semanais como um horário normal de trabalho e que prevê a possibilidade de o tempo total de trabalho por dia, incluindo as horas extraordinárias, chegar às 12 horas? É muito hipócrita propor uma legislação com este conteúdo e depois andar sempre a exprimir preocupações com a delinquência juvenil, com o consumo de drogas e o insucesso escolar. Outro problema que gostaria de ver abordado é aquele que se prende com os rendimentos dos trabalhadores da Administração Pública, um dos principais alvos de ataque deste Governo. O poder de compra tem diminuído devido à falta de actualização dos salários em função da inflação, quer em virtude do imposto profissional que foi estendido aos vencimentos da Função Pública, quer também por virtude ao recurso de formas mais precárias e menos regulamentadas de recrutamento.
- Que balanço faz do trabalho deste Governo?
A.K. - O balanço é totalmente negativo, em todas as frentes. Desde logo, no plano da organização política. Não houve qualquer avanço a caminho da democratização do regime. Aliás, gostaria de relembrar que a Lei Básica prevê nos seus anexos I e II a possibilidade de os métodos de escolha do Chefe do Executivo e dos deputados à Assembleia Legislativa serem alterados para as eleições de 2009.
- O que já não vai acontecer...
A.K. - Isso poderia ter sido incluído na revisão da legislação eleitoral feita este ano, mas não aconteceu. Um dos argumentos [invocados pelo Governo], o de que a população, na resposta aos inquéritos, não suscitou esse pedido, nem merece comentário. Como as propostas apresentadas não tocaram minimamente nos métodos de escolha do Chefe do Executivo e dos deputados, mas sim apenas aspectos relativos ao recenseamento eleitoral e fraude, naturalmente que as sugestões das pessoas focavam esses assuntos. Quanto ao outro argumento – o de que essas alterações não dependiam apenas da vontade das autoridades de Macau, mas também das autoridades centrais -, isso não corresponde totalmente ao que está nos Anexos I e II da Lei Básica. Em relação ao método de escolha do Chefe do Executivo, é verdade que a lei que viesse a ser aprovada em Macau, no sentido de alterar as regras, de forma a que, por exemplo, fosse estabelecido o sufrágio universal, teria de ser enviada ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional para efeitos de ratificação. Em relação ao método de escolha dos deputados à Assembleia Legislativa, isso é diferente, porque o Anexo II prevê que a lei que venha a aprovar essas alterações seja comunicada ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional para efeitos de registo, não impediria a entrada em vigor da lei. Penso também que se tem assistido a uma progressiva deterioração dos direitos fundamentais. Isso é visível em várias circunstâncias – foi visível, por exemplo, em manifestações como a do Primeiro de Maio de 2007. Além disso, o autoritarismo no seio da Administração Pública aumentou significativamente e começam a vir agora a lume despedimentos arbitrários.
- E quanto à componente económica?
A.K. – Considero que o balanço da actuação do Governo é negativo. É óbvio que se entendermos que o desenvolvimento económico se mede apenas pelo PIB ou mesmo pelo valor do PIB per capita, aí dir-se-á que houve desenvolvimento económico, mas penso que não é nessa perspectiva que se deve avaliar. De facto, a economia de Macau tornou-se muito mais dependente do jogo. Por outro lado, o Governo permitiu a especulação imobiliária e não tomou qualquer medida para combater a inflação, remeteu-se sempre ao argumento de que estamos numa economia liberal e de que não pode intervir. Na minha opinião, deveria haver um regime legal que impusesse limites à fixação de preços e rendas dos imóveis.
- E na área social?
A.K. - O Governo falhou redondamente. Não aproveitou a oportunidade de, através da legislação laboral, contribuir para um sistema mais justo. Por outro lado, era necessário uma melhoria significativa no sistema de segurança social, além de ser visível que o sistema de saúde se tem vindo a degradar. Continua a haver um sistema de ensino praticamente idêntico ao que existia antes da transferência de soberania. Falando, por exemplo, do aspecto ambiental, assistiu-se a um agravamento da poluição e a urbanização piorou muito.
- Façamos um exercício de futurologia. Quem será o próximo Chefe do Executivo da RAEM?
A.K. – O regime oligárquico definido, tal como se encontra na Lei Básica e na legislação eleitoral, faz com que o Chefe do Executivo, com toda a probabilidade, seja escolhido dentre a burguesia capitalista ou que, pelo menos, seja alguém que recolha o seu apoio. Independentemente das características pessoais de quem venha a ser escolhido, a sua linha política não poderá ser muito diferente da que tem vindo a ser seguida por este Governo. Com toda a sinceridade, não faço a menor ideia e digo que, entre as pessoas que têm sido apontadas, não tenho a menor preferência. Para mim, vão todos seguir a mesma política.
- Um dos pontos que manchou a actuação do Governo foi o caso Ao Man Long. Tendo em conta que, segundo as suas próprias palavras, o próximo Chefe do Executivo será um membro da burguesia capitalista, acha que casos como este se poderão repetir?
A.K. - Sim. Contudo, se alguém tentar obter ganhos através de métodos de corrupção, tentará ser mais cauteloso. Mas o risco de corrupção é muito mais forte num regime oligárquico como este. Existe sempre aqui tráfico de influência entre os governantes e os empresários. Se, por exemplo, as obras públicas fossem apenas atribuídas a uma empresa pública de construção civil, desapareceria um dos terrenos férteis de corrupção.
- Quem gostaria de ver como Chefe do Executivo?
A.K. - Este regime é tão anti-democrático que alguém com quem me identificasse minimamente não iria ser Chefe do Executivo, a não ser no caso excepcional de essa pessoa concorrer ao cargo com o objectivo de, no mais curto prazo possível, promover a transição democrática.