Teoria dos trabalhadores descartáveis
Precisa de um trabalhador qualificado? E de um sem qualquer qualificação? Em Macau não os encontra? Vá buscá-los lá fora e, quando deixarem de ser úteis, mostre-lhes onde fica a fronteira. Esta tese foi defendida ontem pelos deputados Leong Iok Wa e Au Kam San e levou Susana Chou a lamentar que Macau tenha perdido o espírito que ela própria encontrou quando veio para cá viver.
Isabel Castro
Não fosse a presença da equipa de directores de serviço e assessores e dir-se-ia que a sessão de ontem era um simples plenário de interpelações orais ao Governo, com a presença do secretário para a Economia e Finanças. O debate sectorial sobre as pastas de Francis Tam das Linhas de Acção Governativa (LAG) para 2009 foi morno, alguns deputados entraram em assuntos tão detalhados que vão merecer resposta por escrito, não foram feitas declarações políticas surpreendentes e os temas não fugiram às previsões: a crise, o jogo e, claro está, a protecção da mão-de-obra local.
Que os auto-denominados democratas e os deputados oriundos do sector laboral defendam a redução (e até mesmo o fim, nalguns sectores) dos trabalhadores não residentes, tal não constitui novidade – tem sido esse o discurso dominante dos últimos tempos, reavivado com o despedimento em massa da Venetian. Porém, ontem, a teoria foi mais longe: colocou-se em causa a atribuição de residência aos quadros qualificados. É que estão a “ocupar” os lugares de talentos locais.
A ideia começou por ser defendida por Leong Iok Wa, oriunda do sector laboral, e contou com o apoio de Au Kam San. O deputado duvidou dos critérios do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau em relação à autorização de residência, dizendo desconhecer os números. Mas uma coisa é certa para o membro da Associação Novo Macau Democrático (ANMD): Os trabalhadores que vêm de fora “ocupam sempre os melhores postos e oportunidades”. Dizendo que “os novos imigrantes são um grande prejuízo”, considerou que é necessário ter “cautela”.
Leong Iok Wa começou por explicar que, não obstante a frequência dos cursos de formação profissional, os desempregados de Macau não conseguem encontrar colocação nas bolsas de emprego organizadas pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL). “O Governo diz que faz formação, mas parece não ter efeito suficiente.” A deputada disse ainda que a DSAL explicou nada poder fazer em relação aos escolhidos pelas entidades patronais. “Diz que desempenha apenas as funções de intermediário e que respeita as regras de mercado”, relatou, em tom de indignação.
O patronato prefere, pelos vistos, os trabalhadores não residentes. E estes, continuou Leong, “estão a roubar oportunidades aos trabalhadores locais - não se preocupam com os salários e, quando chegam cá, procuram melhor”. A deputada falava da mão-de-obra indiferenciada. Mas esta não é a única a prejudicar os nados e criados em Macau: os trabalhadores qualificados também não devem ganhar raízes à terra.
“Achávamos que era razoável a importação de gestores, mas estes não podem ficar a longo prazo. As empresas têm que formar os trabalhadores locais para que eles ocupem esses cargos.” Leong Iok Wa deu um exemplo como solução possível: a Malásia. Segundo a deputada, depois de três anos a trabalhar no país, os estrangeiros são obrigados a sair.
Macau não era assim
O tom e o conteúdo das declarações destes dois deputados provocaram uma reacção de Susana Chou. A presidente do órgão legislativo da RAEM defendeu que “não se devem afastar os estrangeiros” e falou do seu caso, dirigindo-se ao deputado Au Kam San. “Eu vim de fora de Macau. Temos que permitir a entrada de estrangeiros. Quando vim para Macau, as pessoas não tinham esse espírito de afastar os de fora e por isso é que tenho esta sensação de pertença”, afirmou. Deu o exemplo de Hong Kong e defendeu que “devemos redobrar os nossos esforços para que os profissionais venham trabalhar para cá”.
Francis Tam subscreveu as palavras de Susana Chou. “Macau dá as boas-vindas aos profissionais qualificados” declarou, acrescentando que a DSAL é criteriosa na aprovação de pedidos de importação de mão-de-obra deste género. O secretário prometeu enviar dados sobre a matéria a Au Kam San.
Quanto aos trabalhadores não residentes, o governante explicou que “é necessário equilibrar diferentes situações”, lembrando que, na altura em que a economia estava a crescer, sem a mão-de-obra importada não teria sido possível dar resposta à procura. Desde a transferência de administração, precisou Tam, a população activa passou dos 190 mil para os 230 mil trabalhadores. “Assegurámos o desenvolvimento económico e o índice salarial cresceu”, disse. Para o secretário, as acusações sobre a substituição da mão-de-obra local por trabalhadores não-residentes são “opiniões subjectivas”.
No entanto, o tempo das vacas gordas já lá vai e Francis Tam concorda que é necessário alterar a forma como se encara a questão, sempre com base numa “análise objectiva”. “Os senhores deputados podem ficar descansados”, afirmou. “Concordo com a redução dos trabalhadores não residentes para assegurar postos de trabalho aos locais. Estamos a ter em conta a realidade.” E garantiu “rigor” na avaliação dos pedidos de importação de mão-de-obra.
O responsável máximo pela DSAL, Shuen Ka Hung, também interveio na sessão de ontem, sendo que aproveitou o esclarecimento que deu à deputada Leong Iok Wa para responder a um recado deixado por Susana Chou no início desta semana. “Tenho um curso superior de Direito e conheço a Lei Básica”, disse o director. “Não podemos obrigar à contratação de nenhum trabalhador [...] Somos bons aprendizes, podem-nos ensinar o que quiserem.” Recorde-se que a presidente da Assembleia recomendou a Florinda Chan que divulgasse a Lei Básica junto dos dirigentes da Administração, por “alguns” deles fazerem interpretações arbitrárias das suas normas.
E as empresas sociais?
É a menina dos olhos das LAG para 2009 do Chefe do Executivo, mas o discurso que ontem Francis Tam fez na Assembleia não continha uma única linha sobre ela. As empresas sociais foram apresentadas como sendo a solução para vários males da RAEM, do desemprego estrutural àquele que pode aparecer com a crise, desempenhando ainda um papel na formação profissional.
Ieong Tou Hong foi o primeiro deputado a falar e identificou de imediato a omissão, pedindo explicações sobre a matéria. A avaliar pela resposta do secretário, percebeu-se que o projecto ainda não se encontra em estado avançado. “Estamos abertos a opiniões, mas já temos definidos alguns aspectos.” Tam não identificou quais, mas exemplificou que, em relação à envergadura das empresas sociais, este critério dependerá do desenvolvimento da RAEM e do número de desempregados que esta crise possa trazer.
“Não vão competir com outras empresas, mas sim fazer um trabalho de colaboração com as associações. Poderão prestar serviços de limpeza ou cuidados de saúde”, disse. “Serve para oferecer postos de trabalho e elevar capacidades técnicas dos trabalhadores.”
A ideia ainda não está sequer totalmente definida mas já há uma voz contra – a de Au Kam San, que preferia que o Governo obrigasse as empresas a contratar mão-de-obra local, em vez de estar a gastar erário público para pagar a esses mesmos trabalhadores. “Uma floresta de empresas sociais será uma grande ameaça para as pequenas e médias empresas. E não resolve a questão do emprego”, vincou. “Temos de ser cautelosos.”
Precisa de um trabalhador qualificado? E de um sem qualquer qualificação? Em Macau não os encontra? Vá buscá-los lá fora e, quando deixarem de ser úteis, mostre-lhes onde fica a fronteira. Esta tese foi defendida ontem pelos deputados Leong Iok Wa e Au Kam San e levou Susana Chou a lamentar que Macau tenha perdido o espírito que ela própria encontrou quando veio para cá viver.
Isabel Castro
Não fosse a presença da equipa de directores de serviço e assessores e dir-se-ia que a sessão de ontem era um simples plenário de interpelações orais ao Governo, com a presença do secretário para a Economia e Finanças. O debate sectorial sobre as pastas de Francis Tam das Linhas de Acção Governativa (LAG) para 2009 foi morno, alguns deputados entraram em assuntos tão detalhados que vão merecer resposta por escrito, não foram feitas declarações políticas surpreendentes e os temas não fugiram às previsões: a crise, o jogo e, claro está, a protecção da mão-de-obra local.
Que os auto-denominados democratas e os deputados oriundos do sector laboral defendam a redução (e até mesmo o fim, nalguns sectores) dos trabalhadores não residentes, tal não constitui novidade – tem sido esse o discurso dominante dos últimos tempos, reavivado com o despedimento em massa da Venetian. Porém, ontem, a teoria foi mais longe: colocou-se em causa a atribuição de residência aos quadros qualificados. É que estão a “ocupar” os lugares de talentos locais.
A ideia começou por ser defendida por Leong Iok Wa, oriunda do sector laboral, e contou com o apoio de Au Kam San. O deputado duvidou dos critérios do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau em relação à autorização de residência, dizendo desconhecer os números. Mas uma coisa é certa para o membro da Associação Novo Macau Democrático (ANMD): Os trabalhadores que vêm de fora “ocupam sempre os melhores postos e oportunidades”. Dizendo que “os novos imigrantes são um grande prejuízo”, considerou que é necessário ter “cautela”.
Leong Iok Wa começou por explicar que, não obstante a frequência dos cursos de formação profissional, os desempregados de Macau não conseguem encontrar colocação nas bolsas de emprego organizadas pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL). “O Governo diz que faz formação, mas parece não ter efeito suficiente.” A deputada disse ainda que a DSAL explicou nada poder fazer em relação aos escolhidos pelas entidades patronais. “Diz que desempenha apenas as funções de intermediário e que respeita as regras de mercado”, relatou, em tom de indignação.
O patronato prefere, pelos vistos, os trabalhadores não residentes. E estes, continuou Leong, “estão a roubar oportunidades aos trabalhadores locais - não se preocupam com os salários e, quando chegam cá, procuram melhor”. A deputada falava da mão-de-obra indiferenciada. Mas esta não é a única a prejudicar os nados e criados em Macau: os trabalhadores qualificados também não devem ganhar raízes à terra.
“Achávamos que era razoável a importação de gestores, mas estes não podem ficar a longo prazo. As empresas têm que formar os trabalhadores locais para que eles ocupem esses cargos.” Leong Iok Wa deu um exemplo como solução possível: a Malásia. Segundo a deputada, depois de três anos a trabalhar no país, os estrangeiros são obrigados a sair.
Macau não era assim
O tom e o conteúdo das declarações destes dois deputados provocaram uma reacção de Susana Chou. A presidente do órgão legislativo da RAEM defendeu que “não se devem afastar os estrangeiros” e falou do seu caso, dirigindo-se ao deputado Au Kam San. “Eu vim de fora de Macau. Temos que permitir a entrada de estrangeiros. Quando vim para Macau, as pessoas não tinham esse espírito de afastar os de fora e por isso é que tenho esta sensação de pertença”, afirmou. Deu o exemplo de Hong Kong e defendeu que “devemos redobrar os nossos esforços para que os profissionais venham trabalhar para cá”.
Francis Tam subscreveu as palavras de Susana Chou. “Macau dá as boas-vindas aos profissionais qualificados” declarou, acrescentando que a DSAL é criteriosa na aprovação de pedidos de importação de mão-de-obra deste género. O secretário prometeu enviar dados sobre a matéria a Au Kam San.
Quanto aos trabalhadores não residentes, o governante explicou que “é necessário equilibrar diferentes situações”, lembrando que, na altura em que a economia estava a crescer, sem a mão-de-obra importada não teria sido possível dar resposta à procura. Desde a transferência de administração, precisou Tam, a população activa passou dos 190 mil para os 230 mil trabalhadores. “Assegurámos o desenvolvimento económico e o índice salarial cresceu”, disse. Para o secretário, as acusações sobre a substituição da mão-de-obra local por trabalhadores não-residentes são “opiniões subjectivas”.
No entanto, o tempo das vacas gordas já lá vai e Francis Tam concorda que é necessário alterar a forma como se encara a questão, sempre com base numa “análise objectiva”. “Os senhores deputados podem ficar descansados”, afirmou. “Concordo com a redução dos trabalhadores não residentes para assegurar postos de trabalho aos locais. Estamos a ter em conta a realidade.” E garantiu “rigor” na avaliação dos pedidos de importação de mão-de-obra.
O responsável máximo pela DSAL, Shuen Ka Hung, também interveio na sessão de ontem, sendo que aproveitou o esclarecimento que deu à deputada Leong Iok Wa para responder a um recado deixado por Susana Chou no início desta semana. “Tenho um curso superior de Direito e conheço a Lei Básica”, disse o director. “Não podemos obrigar à contratação de nenhum trabalhador [...] Somos bons aprendizes, podem-nos ensinar o que quiserem.” Recorde-se que a presidente da Assembleia recomendou a Florinda Chan que divulgasse a Lei Básica junto dos dirigentes da Administração, por “alguns” deles fazerem interpretações arbitrárias das suas normas.
E as empresas sociais?
É a menina dos olhos das LAG para 2009 do Chefe do Executivo, mas o discurso que ontem Francis Tam fez na Assembleia não continha uma única linha sobre ela. As empresas sociais foram apresentadas como sendo a solução para vários males da RAEM, do desemprego estrutural àquele que pode aparecer com a crise, desempenhando ainda um papel na formação profissional.
Ieong Tou Hong foi o primeiro deputado a falar e identificou de imediato a omissão, pedindo explicações sobre a matéria. A avaliar pela resposta do secretário, percebeu-se que o projecto ainda não se encontra em estado avançado. “Estamos abertos a opiniões, mas já temos definidos alguns aspectos.” Tam não identificou quais, mas exemplificou que, em relação à envergadura das empresas sociais, este critério dependerá do desenvolvimento da RAEM e do número de desempregados que esta crise possa trazer.
“Não vão competir com outras empresas, mas sim fazer um trabalho de colaboração com as associações. Poderão prestar serviços de limpeza ou cuidados de saúde”, disse. “Serve para oferecer postos de trabalho e elevar capacidades técnicas dos trabalhadores.”
A ideia ainda não está sequer totalmente definida mas já há uma voz contra – a de Au Kam San, que preferia que o Governo obrigasse as empresas a contratar mão-de-obra local, em vez de estar a gastar erário público para pagar a esses mesmos trabalhadores. “Uma floresta de empresas sociais será uma grande ameaça para as pequenas e médias empresas. E não resolve a questão do emprego”, vincou. “Temos de ser cautelosos.”