O direito à cidade onde se vive melhor
O argumento invocado é a protecção dos trabalhadores locais mas facilmente resulta em discriminação. Há deputados que entendem que a RAEM deve fechar as fronteiras aos que vêm de fora, à procura de uma vida melhor. A teoria de Leong Iok Va e Au Kam San vai contra uma das características mais fortes da história do território: a integração de pessoas de diferentes culturas. Não fosse Macau a cidade das portas abertas e, muito provavelmente, Au não tinha um colega de bancada chamado Ng.
Isabel Castro
O discurso não é novo mas, na passada semana, avançou para um novo patamar: não só Macau deve mandar para casa os trabalhadores não-residentes como convém não autorizar a fixação de residência a torto e a direito. A lógica proteccionista de deputados como Leong Iok Wa e Au Kam San ganhou novo pretexto (e fôlego) com a chegada da crise e as notícias que dão conta da suspensão de projectos na indústria principal da RAEM.
É ainda um cavalo de batalha que, sendo populista, poderá reunir facilmente o apoio de muitos eleitores, isto quando estamos a menos de um ano das eleições para a Assembleia Legislativa (AL). Mas merece também contestação. Na passada quinta-feira, coube a Susana Chou, presidente do órgão legislativo da RAEM, fazer o apelo à sensatez. “Eu vim de fora de Macau. Temos que permitir a entrada de estrangeiros. Quando vim para Macau, as pessoas não tinham esse espírito de afastar os de fora e por isso é que tenho esta sensação de pertença.”
Chou falava depois de Leong ter defendido que os quadros qualificados não devem estar a ocupar os postos dos trabalhadores locais, sendo que devem ser as empresas a dar formação a esta mão-de-obra para que possa subir na carreira. A presidente da AL contestava ainda as declarações de Au Kam San, que manifestou ter dúvidas em relação aos critérios de atribuição de residência e alertou para o perigo que são os imigrantes. Os trabalhadores que vêm de fora “ocupam sempre os melhores postos e oportunidades”, constatou o auto-denominado democrata. “Os novos imigrantes são um grande prejuízo”, acrescentou, aconselhando “cautela”.
Uma análise à demografia da RAEM e meia dúzia de dados históricos sobre a forma como o território se desenvolveu dão razão a Susana Chou no que toca à mudança de discurso: efectivamente, quando a presidente da Assembleia chegou a Macau, o espírito era outro em relação a quem não é originalmente de cá.
“Macau sempre teve a tradição de ser uma porta aberta”, assinala o arquitecto José Maneiras. Por esta porta entraram pessoas das mais diversas origens e que, ao longo dos séculos, deram diferentes contributos para o território – da dinamização económica ao plano intelectual, passando, claro está, pela construção da cidade propriamente dita, através do trabalho braçal.
História dos ilustres “estrangeiros”
Se Macau não se tivesse afirmado, em diferentes momentos da sua História, como uma cidade de acolhimento, era hoje completamente diferente. Até na sua fisionomia. O ex-líbris que tanto jeito dá a quem promove turisticamente o território foi construído por estrangeiros – a Igreja de São Paulo foi edificada por cristãos japoneses que procuraram a cidade como refúgio.
Há historiadores que entendem que esta abertura de Macau ao mundo fez com que tivesse sido a primeira cidade a ter a experiência do que agora se chama globalização. A localização e as diferentes políticas de administração fizeram com que, de um modo geral, o território fosse encarado como um porto seguro para gente de diversas origens, idiomas e práticas religiosas.
Do grande país de que a RAEM faz parte, na altura em que o território era ainda administrado por Portugal, chegaram também muitos habitantes que, de um modo mais ou menos visível, cá deixaram as suas marcas. O arquitecto José Maneiras utiliza o século XIX para exemplificar que “sempre que havia convulsões internas na China, procurava-se Macau como refúgio”. A escolha trouxe até cá muitos anónimos mas também figuras que se tornaram ilustres e dignificam, nos dias que correm, as páginas da História oficial.
São nomes como Sun Yat-sen, o fundador da República da China (a revolução que levou à queda da Dinastia Qing terá sido arquitectada em Macau). Sun deixou para a posteridade o Hospital Kiang Wu, do qual foi um dos fundadores, tendo introduzido o conceito de medicina moderna na cidade. Outra figura da qual a RAEM se orgulha é Zheng Guanying, considerado um dos mais influentes pensadores da China moderna. O Mandarim, como ficou para a História, não era de cá - nasceu em 1842 na província de Guangdong. “Foram vários os pensadores, artistas e poetas que, não sendo de Macau, escolheram a cidade para viver, por diferentes razões”, sintetiza José Maneiras.
Cidade para uma nova vida
Já no século XX, registaram-se diversas vagas migratórias que alteraram a estrutura demográfica do território. Uma das mais significativas ocorreu durante a invasão sino-japonesa e a Segunda Guerra Mundial. “Não se sabe ao certo quantas pessoas terão vivido cá nessa altura, mas fala-se em cerca de um milhão”, aponta o arquitecto. Quem conseguia fugir vinha para Macau que, durante esse período, foi uma cidade de fracas condições de vida, com a fome e as doenças a matarem os mais desprotegidos. Mas, ainda assim, era uma cidade de paz. E que manteve as portas abertas. Em 2006, Macau contava com 4984 residentes que, não sendo naturais do território, vieram para cá viver naquela altura.
As alterações políticas da China a partir dos meados do século XX tiveram também influências demográficas em Macau, com a chegada de pessoas que “ajudaram a construir a cidade” e deram um impulso à indústria manufactureira, até então inexistente. “À excepção da pesca e da indústria do fogo de artifício, Macau pouco mais tinha”, contextualiza Maneiras.
Os censos de 1960 apontam para 160 mil habitantes e os anos que se seguem são de um grande êxodo populacional na região. Hong Kong tinha uma política de exclusividade em relação aos seus residentes, mas Macau não. Com as alterações no ambiente político da Indonésia e também na então Birmânia, o território acolheu pessoas de etnia chinesa oriundas desses países. Mudaram-se para cá e, com alguma capacidade financeira, montaram os seus negócios, alguns de grandes dimensões, outros mais pequenos. O que permanece desta vaga migratória pode ser encontrado, por exemplo, na zona dos Três Candeeiros, onde persiste uma comunidade de chineses de diferentes proveniências.
O fim do monopólio do jogo em 2002 e a construção de grandes empreendimentos neste sector fez com que Macau tivesse necessidade de ir buscar mão-de-obra ao exterior, sem a qual não teria havido possibilidade de edificar os casinos e resorts mais recentes – e o secretário para a Economia e Finanças lembrou este facto no debate em que Leong e Au se manifestaram em relação aos trabalhadores não residentes.
A liberalização da principal indústria do território revelou outras carências além das da construção civil, que foram sendo colmatadas com os pedidos de importação de mão-de-obra. Não obstante a vaga do novo milénio, as pequenas e médias empresas continuam a apontar a falta de recursos humanos como um dos principais problemas ao seu desenvolvimento.
Famosos que vieram de fora
Au e Leong assumiram posições que levaram Susana Chou a aconselhar que “não se devem afastar os estrangeiros”, tendo em seguida dado a sua vida como exemplo para contestar o discurso dos dois deputados. Mas há mais casos na Assembleia Legislativa que são a tradução desta noção de Macau enquanto cidade de portas abertas. O vice-presidente da AL também não é natural do território: Lau Cheok Va nasceu na China em Fevereiro de 1947.
Curiosamente, o colega de bancada de Au Kam San, Ng Kuok Cheong, também não veio ao mundo em Macau. Ng é menos cáustico que Au mas defende que o Governo deve pôr fim aos não residentes. Uma pequena biografia disponibilizada em 1999 dá o membro da Associação Novo Macau Democrático como sendo natural de Nam Hoi, na China. Ng Kuok Cheong nasceu em 1958 e, com apenas um ano, veio viver para o território. De acordo com os dados do Intercensos de 2006, há mais 12.634 pessoas ainda a residir no território que se mudaram para Macau na mesma década.
Além dos deputados de Fujien (25 por cento da população da RAEM será natural da província de Chan Meng Kam), há um outro membro da AL que também beneficiou da política de portas abertas do território: a empresária Tina Ho, irmã do possível candidato a Chefe do Executivo Ho Iat Seng.
E por falar em Chefe do Executivo, recorde-se que o pai do actual responsável máximo pelo Governo, o Comendador Ho Yin, também não nasceu cá, mas sim na República Popular da China. Ainda no mundo político local, o ex-deputado e actual porta-voz do Conselho Executivo da RAEM, Tong Chi Kin, é oriundo de Shan Tou.
Fora do hemiciclo e com uma forte influência na actualidade da RAEM, destaque para figuras ilustres do mundo empresarial que escolheram Macau para se fixarem e desenvolverem os seus negócios: Ma Man Kei nasceu em Nanhai em 1919, sendo residente da RAEM desde 1941. E alguém imagina Macau sem Stanley Ho? Natural de Hong Kong, o magnata do jogo nasceu em 1921 na então colónia britânica.
No sector judiciário - área que tem estado muito presente nas páginas dos jornais devido à carência de magistrados judiciais e à aparente relutância em se recrutarem mais ao exterior -, trabalham dois juízes que também não tiveram Macau como berço: Chu Kin e Sam Hou Fai são magistrados judiciais do Tribunal de Última Instância e nasceram ambos na República Popular da China.
“Devemos redobrar os nossos esforços para que os profissionais venham trabalhar para cá”, apelou na passada semana Susana Chou, defensora, por exemplo, da contratação de juízes a Portugal, para que seja possível suprimir as lacunas locais. Se, noutros tempos, Macau tivesse adoptado a política de proteger apenas os que são da casa, provavelmente Chou não teria a possibilidade de defender as suas perspectivas. Não no cargo onde agora se encontra.
“Cuidado” com o discurso recorrente
A presidente da AL faz parte de um grupo de 12 mil residentes que, não sendo naturais de Macau, são membros do órgão legislativo, quadros superiores da Administração Pública e de associações, directores e quadros dirigentes de empresas, indicam os Intercensos de 2006.
José Luís Sales Marques, antigo presidente da Câmara Municipal de Macau Provisória, faz o exercício da contextualização histórica ao PONTO FINAL para, em seguida, dizer ser contra a prática deste proteccionismo na RAEM. Quando se fala em mão-de-obra e em residentes, está-se perante uma questão sensível que “deve ser tratada com cuidado”, recomenda.
“Infelizmente, é um discurso recorrente”, comenta. Macau não tem a exclusividade nem foi inovador na matéria. “Existe aqui mas vê-se também na Europa”, sublinha o presidente do Instituto de Estudos Europeus de Macau (IEEM). “Macau precisa de trabalhadores, não tem população activa suficiente para responder às necessidades”, diz.
Sales Marques entende que é preciso ter cuidado com a garantia dos direitos dos trabalhadores locais. Porém, considera que tal não deve ser feito por via do proteccionismo, mas sim através da elevação das competências profissionais. Está-se, portanto, perante uma questão de qualidade. Há duas semanas, o Chefe do Executivo pôs o dedo na ferida, quando disse na AL que existe população activa na RAEM que não reúne as competências exigidas pelos contratadores.
“É preciso que as pessoas de Macau aprendam a ser mais competitivas. Muitas vezes, a culpa é nossa. Temos que melhorar a nossa competitividade”, sustenta Sales Marques. O momento actual exige que se tenha prudência na importação de mão-de-obra mas, continua o presidente do IEEM, convém que se encontre uma posição equilibrada.
O assunto não tem apenas implicações relacionadas com as regras de mercado – é também uma questão com dimensão cultural. “Macau é uma cidade que se preza pela sua diversidade cultural”, vinca Sales Marques. E esta conquistou-se, precisamente, com as pessoas que vieram para cá viver e trabalhar. Dos cristãos japoneses da Igreja de São Paulo ao trabalhadores que constroem os casinos.
Quem faz Macau?
Os dados mais recentes da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos (DSEC) explicam que, no final da primeira metade deste ano, a população residente de Macau foi estimada em 552 mil pessoas, o que significa um aumento de 26 mil relativamente ao período homólogo de 2007. Ainda de acordo com a DSEC, até 30 de Junho último, estavam em Macau 98.505 trabalhadores não residentes, ou seja, mais 8492 do que no em Março deste ano.
Os Intercensos de 2006 permitem perceber qual a composição demográfica de Macau no que à origem diz respeito. Terra de acolhimento para muitos e mero local de passagem para outros, mais de metade da população da RAEM não nasceu cá: do universo de 502.113 residentes então contabilizados, 287.465 entravam no grupo dos nascidos fora de Macau. A grande maioria (235.960) tinha na China a residência anterior.
Encontrar um residente de etnia chinesa que tenha bisavós oriundos de Macau é tarefa quase impossível. As estatísticas e a História ajudam a perceber porquê. Do total de residentes contados pela DSEC em 2006, apenas 25.256 permaneceram sempre em Macau. Quanto aos que cá vivem há 25 anos ou mais, totalizam 111.142.
Na década de 80 do século passado verificou-se uma forte vaga de migrantes da China Continental para Macau – são mais de 64 mil os actuais residentes que mudaram para o território nessa altura. Nem todos o fizeram legalmente – obtiveram o direito à residência já depois de cá estarem durante algum tempo.
Quanto ao nível de educação destes residentes não naturais do território, mais de 143 mil têm o ensino secundário, sendo que quase 33 mil frequentaram a universidade. Os restantes 93 mil têm apenas o ensino primário. A grande maioria (175 mil) trabalha por conta de outrem.
O argumento invocado é a protecção dos trabalhadores locais mas facilmente resulta em discriminação. Há deputados que entendem que a RAEM deve fechar as fronteiras aos que vêm de fora, à procura de uma vida melhor. A teoria de Leong Iok Va e Au Kam San vai contra uma das características mais fortes da história do território: a integração de pessoas de diferentes culturas. Não fosse Macau a cidade das portas abertas e, muito provavelmente, Au não tinha um colega de bancada chamado Ng.
Isabel Castro
O discurso não é novo mas, na passada semana, avançou para um novo patamar: não só Macau deve mandar para casa os trabalhadores não-residentes como convém não autorizar a fixação de residência a torto e a direito. A lógica proteccionista de deputados como Leong Iok Wa e Au Kam San ganhou novo pretexto (e fôlego) com a chegada da crise e as notícias que dão conta da suspensão de projectos na indústria principal da RAEM.
É ainda um cavalo de batalha que, sendo populista, poderá reunir facilmente o apoio de muitos eleitores, isto quando estamos a menos de um ano das eleições para a Assembleia Legislativa (AL). Mas merece também contestação. Na passada quinta-feira, coube a Susana Chou, presidente do órgão legislativo da RAEM, fazer o apelo à sensatez. “Eu vim de fora de Macau. Temos que permitir a entrada de estrangeiros. Quando vim para Macau, as pessoas não tinham esse espírito de afastar os de fora e por isso é que tenho esta sensação de pertença.”
Chou falava depois de Leong ter defendido que os quadros qualificados não devem estar a ocupar os postos dos trabalhadores locais, sendo que devem ser as empresas a dar formação a esta mão-de-obra para que possa subir na carreira. A presidente da AL contestava ainda as declarações de Au Kam San, que manifestou ter dúvidas em relação aos critérios de atribuição de residência e alertou para o perigo que são os imigrantes. Os trabalhadores que vêm de fora “ocupam sempre os melhores postos e oportunidades”, constatou o auto-denominado democrata. “Os novos imigrantes são um grande prejuízo”, acrescentou, aconselhando “cautela”.
Uma análise à demografia da RAEM e meia dúzia de dados históricos sobre a forma como o território se desenvolveu dão razão a Susana Chou no que toca à mudança de discurso: efectivamente, quando a presidente da Assembleia chegou a Macau, o espírito era outro em relação a quem não é originalmente de cá.
“Macau sempre teve a tradição de ser uma porta aberta”, assinala o arquitecto José Maneiras. Por esta porta entraram pessoas das mais diversas origens e que, ao longo dos séculos, deram diferentes contributos para o território – da dinamização económica ao plano intelectual, passando, claro está, pela construção da cidade propriamente dita, através do trabalho braçal.
História dos ilustres “estrangeiros”
Se Macau não se tivesse afirmado, em diferentes momentos da sua História, como uma cidade de acolhimento, era hoje completamente diferente. Até na sua fisionomia. O ex-líbris que tanto jeito dá a quem promove turisticamente o território foi construído por estrangeiros – a Igreja de São Paulo foi edificada por cristãos japoneses que procuraram a cidade como refúgio.
Há historiadores que entendem que esta abertura de Macau ao mundo fez com que tivesse sido a primeira cidade a ter a experiência do que agora se chama globalização. A localização e as diferentes políticas de administração fizeram com que, de um modo geral, o território fosse encarado como um porto seguro para gente de diversas origens, idiomas e práticas religiosas.
Do grande país de que a RAEM faz parte, na altura em que o território era ainda administrado por Portugal, chegaram também muitos habitantes que, de um modo mais ou menos visível, cá deixaram as suas marcas. O arquitecto José Maneiras utiliza o século XIX para exemplificar que “sempre que havia convulsões internas na China, procurava-se Macau como refúgio”. A escolha trouxe até cá muitos anónimos mas também figuras que se tornaram ilustres e dignificam, nos dias que correm, as páginas da História oficial.
São nomes como Sun Yat-sen, o fundador da República da China (a revolução que levou à queda da Dinastia Qing terá sido arquitectada em Macau). Sun deixou para a posteridade o Hospital Kiang Wu, do qual foi um dos fundadores, tendo introduzido o conceito de medicina moderna na cidade. Outra figura da qual a RAEM se orgulha é Zheng Guanying, considerado um dos mais influentes pensadores da China moderna. O Mandarim, como ficou para a História, não era de cá - nasceu em 1842 na província de Guangdong. “Foram vários os pensadores, artistas e poetas que, não sendo de Macau, escolheram a cidade para viver, por diferentes razões”, sintetiza José Maneiras.
Cidade para uma nova vida
Já no século XX, registaram-se diversas vagas migratórias que alteraram a estrutura demográfica do território. Uma das mais significativas ocorreu durante a invasão sino-japonesa e a Segunda Guerra Mundial. “Não se sabe ao certo quantas pessoas terão vivido cá nessa altura, mas fala-se em cerca de um milhão”, aponta o arquitecto. Quem conseguia fugir vinha para Macau que, durante esse período, foi uma cidade de fracas condições de vida, com a fome e as doenças a matarem os mais desprotegidos. Mas, ainda assim, era uma cidade de paz. E que manteve as portas abertas. Em 2006, Macau contava com 4984 residentes que, não sendo naturais do território, vieram para cá viver naquela altura.
As alterações políticas da China a partir dos meados do século XX tiveram também influências demográficas em Macau, com a chegada de pessoas que “ajudaram a construir a cidade” e deram um impulso à indústria manufactureira, até então inexistente. “À excepção da pesca e da indústria do fogo de artifício, Macau pouco mais tinha”, contextualiza Maneiras.
Os censos de 1960 apontam para 160 mil habitantes e os anos que se seguem são de um grande êxodo populacional na região. Hong Kong tinha uma política de exclusividade em relação aos seus residentes, mas Macau não. Com as alterações no ambiente político da Indonésia e também na então Birmânia, o território acolheu pessoas de etnia chinesa oriundas desses países. Mudaram-se para cá e, com alguma capacidade financeira, montaram os seus negócios, alguns de grandes dimensões, outros mais pequenos. O que permanece desta vaga migratória pode ser encontrado, por exemplo, na zona dos Três Candeeiros, onde persiste uma comunidade de chineses de diferentes proveniências.
O fim do monopólio do jogo em 2002 e a construção de grandes empreendimentos neste sector fez com que Macau tivesse necessidade de ir buscar mão-de-obra ao exterior, sem a qual não teria havido possibilidade de edificar os casinos e resorts mais recentes – e o secretário para a Economia e Finanças lembrou este facto no debate em que Leong e Au se manifestaram em relação aos trabalhadores não residentes.
A liberalização da principal indústria do território revelou outras carências além das da construção civil, que foram sendo colmatadas com os pedidos de importação de mão-de-obra. Não obstante a vaga do novo milénio, as pequenas e médias empresas continuam a apontar a falta de recursos humanos como um dos principais problemas ao seu desenvolvimento.
Famosos que vieram de fora
Au e Leong assumiram posições que levaram Susana Chou a aconselhar que “não se devem afastar os estrangeiros”, tendo em seguida dado a sua vida como exemplo para contestar o discurso dos dois deputados. Mas há mais casos na Assembleia Legislativa que são a tradução desta noção de Macau enquanto cidade de portas abertas. O vice-presidente da AL também não é natural do território: Lau Cheok Va nasceu na China em Fevereiro de 1947.
Curiosamente, o colega de bancada de Au Kam San, Ng Kuok Cheong, também não veio ao mundo em Macau. Ng é menos cáustico que Au mas defende que o Governo deve pôr fim aos não residentes. Uma pequena biografia disponibilizada em 1999 dá o membro da Associação Novo Macau Democrático como sendo natural de Nam Hoi, na China. Ng Kuok Cheong nasceu em 1958 e, com apenas um ano, veio viver para o território. De acordo com os dados do Intercensos de 2006, há mais 12.634 pessoas ainda a residir no território que se mudaram para Macau na mesma década.
Além dos deputados de Fujien (25 por cento da população da RAEM será natural da província de Chan Meng Kam), há um outro membro da AL que também beneficiou da política de portas abertas do território: a empresária Tina Ho, irmã do possível candidato a Chefe do Executivo Ho Iat Seng.
E por falar em Chefe do Executivo, recorde-se que o pai do actual responsável máximo pelo Governo, o Comendador Ho Yin, também não nasceu cá, mas sim na República Popular da China. Ainda no mundo político local, o ex-deputado e actual porta-voz do Conselho Executivo da RAEM, Tong Chi Kin, é oriundo de Shan Tou.
Fora do hemiciclo e com uma forte influência na actualidade da RAEM, destaque para figuras ilustres do mundo empresarial que escolheram Macau para se fixarem e desenvolverem os seus negócios: Ma Man Kei nasceu em Nanhai em 1919, sendo residente da RAEM desde 1941. E alguém imagina Macau sem Stanley Ho? Natural de Hong Kong, o magnata do jogo nasceu em 1921 na então colónia britânica.
No sector judiciário - área que tem estado muito presente nas páginas dos jornais devido à carência de magistrados judiciais e à aparente relutância em se recrutarem mais ao exterior -, trabalham dois juízes que também não tiveram Macau como berço: Chu Kin e Sam Hou Fai são magistrados judiciais do Tribunal de Última Instância e nasceram ambos na República Popular da China.
“Devemos redobrar os nossos esforços para que os profissionais venham trabalhar para cá”, apelou na passada semana Susana Chou, defensora, por exemplo, da contratação de juízes a Portugal, para que seja possível suprimir as lacunas locais. Se, noutros tempos, Macau tivesse adoptado a política de proteger apenas os que são da casa, provavelmente Chou não teria a possibilidade de defender as suas perspectivas. Não no cargo onde agora se encontra.
“Cuidado” com o discurso recorrente
A presidente da AL faz parte de um grupo de 12 mil residentes que, não sendo naturais de Macau, são membros do órgão legislativo, quadros superiores da Administração Pública e de associações, directores e quadros dirigentes de empresas, indicam os Intercensos de 2006.
José Luís Sales Marques, antigo presidente da Câmara Municipal de Macau Provisória, faz o exercício da contextualização histórica ao PONTO FINAL para, em seguida, dizer ser contra a prática deste proteccionismo na RAEM. Quando se fala em mão-de-obra e em residentes, está-se perante uma questão sensível que “deve ser tratada com cuidado”, recomenda.
“Infelizmente, é um discurso recorrente”, comenta. Macau não tem a exclusividade nem foi inovador na matéria. “Existe aqui mas vê-se também na Europa”, sublinha o presidente do Instituto de Estudos Europeus de Macau (IEEM). “Macau precisa de trabalhadores, não tem população activa suficiente para responder às necessidades”, diz.
Sales Marques entende que é preciso ter cuidado com a garantia dos direitos dos trabalhadores locais. Porém, considera que tal não deve ser feito por via do proteccionismo, mas sim através da elevação das competências profissionais. Está-se, portanto, perante uma questão de qualidade. Há duas semanas, o Chefe do Executivo pôs o dedo na ferida, quando disse na AL que existe população activa na RAEM que não reúne as competências exigidas pelos contratadores.
“É preciso que as pessoas de Macau aprendam a ser mais competitivas. Muitas vezes, a culpa é nossa. Temos que melhorar a nossa competitividade”, sustenta Sales Marques. O momento actual exige que se tenha prudência na importação de mão-de-obra mas, continua o presidente do IEEM, convém que se encontre uma posição equilibrada.
O assunto não tem apenas implicações relacionadas com as regras de mercado – é também uma questão com dimensão cultural. “Macau é uma cidade que se preza pela sua diversidade cultural”, vinca Sales Marques. E esta conquistou-se, precisamente, com as pessoas que vieram para cá viver e trabalhar. Dos cristãos japoneses da Igreja de São Paulo ao trabalhadores que constroem os casinos.
Quem faz Macau?
Os dados mais recentes da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos (DSEC) explicam que, no final da primeira metade deste ano, a população residente de Macau foi estimada em 552 mil pessoas, o que significa um aumento de 26 mil relativamente ao período homólogo de 2007. Ainda de acordo com a DSEC, até 30 de Junho último, estavam em Macau 98.505 trabalhadores não residentes, ou seja, mais 8492 do que no em Março deste ano.
Os Intercensos de 2006 permitem perceber qual a composição demográfica de Macau no que à origem diz respeito. Terra de acolhimento para muitos e mero local de passagem para outros, mais de metade da população da RAEM não nasceu cá: do universo de 502.113 residentes então contabilizados, 287.465 entravam no grupo dos nascidos fora de Macau. A grande maioria (235.960) tinha na China a residência anterior.
Encontrar um residente de etnia chinesa que tenha bisavós oriundos de Macau é tarefa quase impossível. As estatísticas e a História ajudam a perceber porquê. Do total de residentes contados pela DSEC em 2006, apenas 25.256 permaneceram sempre em Macau. Quanto aos que cá vivem há 25 anos ou mais, totalizam 111.142.
Na década de 80 do século passado verificou-se uma forte vaga de migrantes da China Continental para Macau – são mais de 64 mil os actuais residentes que mudaram para o território nessa altura. Nem todos o fizeram legalmente – obtiveram o direito à residência já depois de cá estarem durante algum tempo.
Quanto ao nível de educação destes residentes não naturais do território, mais de 143 mil têm o ensino secundário, sendo que quase 33 mil frequentaram a universidade. Os restantes 93 mil têm apenas o ensino primário. A grande maioria (175 mil) trabalha por conta de outrem.